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Guilherme d'Oliveira Martins
O lugar do outro...

O encontro entre o Papa Francisco e o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento da maior importância no âmbito do diálogo entre as religiões. Mais do que uma cerimónia formal, a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana, em 4 de fevereiro de 2019, permitiu a afirmação de uma cultura de paz baseada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão baseada no conhecimento e na sabedoria. “A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela sua Misericórdia -, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo, apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres».

O Documento é «um convite à reconciliação e à fraternidade entre todos os crentes, (…) entre os crentes e os não-crentes, e entre todas as pessoas de boa vontade»; «um apelo a toda a consciência viva, que repudia a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo a quem ama os valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões»; mas também «um testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações divididos e eleva a alma humana»; bem como «um símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam». Pode dizer-se, assim, que se trata de uma tomada de posição única, que merece uma especial atenção por parte de todos, mulheres e homens de boa vontade. De facto, a paz entre as religiões é, desde sempre, e hoje especialmente, uma exigência da sabedoria humana. A partir do reconhecimento da existência da família humana, impõe-se salvaguardá-la, o que obriga a um diálogo diário e efetivo. No fundo, a identidade não é a autossuficiência, nem o fechamento sobre o que herdamos. O valor do que recebemos só poderá ser acrescentado se houver disponibilidade e liberdade de espírito. As identidades enriquecem-se, crescem e desenvolvem-se dando e recebendo. O isolamento gera a decadência e o desaparecimento. Mas não há diálogo entre as religiões, como entre as culturas, se não nos dispusermos a colocar-nos no lugar dos outros. De facto, o insucesso do diálogo entre culturas deve-se à ignorância, ao desconhecimento e à indiferença. Nunca devemos esquecer o que Paul Claudel dizia sobre a palavra conhecimento, que só pode ser entendida se for partilhada – conhecer, “con-naître” é nascer com… Não devemos abdicar de quem somos para agradar ao outro, mas temos de ter a coragem de ir ao encontro do outro. O pleno reconhecimento do outro, a compreensão da sua liberdade, obriga-nos, a tudo fazermos para que a sua autonomia e os seus direitos sejam respeitados, em toda a parte e por todos. Como afirmou o Papa Francisco: “sem liberdade não se é filho da família humana, mas escravo”. E o certo é que entre as liberdades humanas não podemos deixar de colocar em destaque a liberdade religiosa, não como mera liberdade de culto, mas como reconhecimento de que somos filhos de uma mesma humanidade, deixando-nos Deus a liberdade, que pressupõe que nenhuma instituição humana pode forçar, nem mesmo em nome da transcendência… Como afirma ainda o documento: «A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o facto de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam». Do mesmo modo, se afirma ainda que «a justiça baseada na misericórdia é o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano». É a dignidade da pessoa humana que está em causa. E a esta luz temos de ler a mensagem do Papa para esta Quaresma: «Se não estivermos voltados continuamente para a Páscoa, para o horizonte da Ressurreição, é claro que acaba por se impor a lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais». Este é um apelo para todos, quando estamos tantas vezes dominados pela lógica mercantil e passageira, “pela ganância insaciável que considera o desejo um direito”. E o Papa lembra ainda: que «a criação – diz São Paulo – deseja de modo intensíssimo que se manifestem os filhos de Deus, isto é, que a vida daqueles que gozam da graça do mistério pascal de Jesus se cubra plenamente dos seus frutos, destinados a alcançar o seu completo amadurecimento na redenção do próprio corpo humano». E que é a Quaresma senão um apelo a que os cristãos encarnem «de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola»?