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Guilherme d'Oliveira Martins
Celebrar S. Tomás de Aquino.

Há anos, Umberto Eco perguntava: o que faria Tomás de Aquino se vivesse nos dias de hoje? Aperceber-se-ia de que “não poderia nem deveria elaborar um sistema definitivo, como uma arquitetura acabada, mas preferiria uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Diria, por certo, que deveria pensar outra coisa”. De facto, como afirmou Karl Rahner o aquinense era um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão. Tanto mais saberemos de Deus quanto mais nos dermos conta da nossa incapacidade e das nossas limitações para compreender a transcendência. Por isso, S. Tomás sempre se atreveu, ousando a ser lúcido acerca dos limites da nossa ousadia.

Os próximos três anos marcarão três grandes aniversários da trajetória de S. Tomás de Aquino: seu nascimento, sua morte e sua canonização. Em 2025 será comemorado o seu nascimento. Não se conhece a data exata, mas é sabido que nasceu em Roccasecca no Lácio, no ano de 1225 numa família influente. Os dominicanos em Toulouse, na França, onde o grande filósofo e teólogo está sepultado, celebrarão o “Doutor Angélico” com vários eventos, que permitirão revelar a sua inesperada atualidade, como o Concílio Vaticano II reconheceu expressamente. Em 2023 passaram 700 anos da sua canonização que ocorreu em 18 de julho de 1323, sob o magistério do Papa João XXII, num momento a partir do qual a sua celebridade correu o risco de poder perder a força espontânea da sua originalidade. O tempo, porém, foi permitindo compreender que a principal virtude do seu contributo foi a do apelo constante a poder ver a presença de Jesus Cristo como companheiro das nossas audácias e exigências. No ano corrente, assinalam-se os 750 anos da morte, que ocorreu em 7 de março de 1274. Estas três ocasiões são motivo para termos um melhor conhecimento da sua personalidade e da sua obra, o que constitui um apelo permanente ao seu espírito de renovador da fé, de quem compreendeu o amor, o respeito mútuo, as bem-aventuranças e a compreensão do bem comum como um sinal prático e humaníssimo da vida humana. Chesterton disse que “Tomás de Aquino surgiu de maneira estranha e algo simbólica no centro do mundo civilizado do seu tempo, no ponto central onde os poderes controlavam a cristandade”. E assim pôde revolucionar o modo de pensar, indo descobrir no mundo grego Aristóteles para abrir novas perspetivas sobre a realidade. “Com argumentos sinceros pôde escalar as torres mais altas e falou com os anjos sobre os telhados de ouro”, para usarmos de novo a expressão do autor de “O Homem que era Quinta-feira”. E recordemos um célebre discípulo português, Frei João de S. Tomás, O.P. (1589-1644), que procurou seguir com fidelidade a orientação de S. Tomás de Aquino na procura de uma ligação entre a contemplação e a ação. A contemplação é uma certa forma de ação interior, dinâmica, progressiva, operante, dependendo da fé mas também do conhecimento, como resulta da teologia dos dons do Espírito Santo, entre os quais se encontra o dom do entendimento. E a contemplação anseia, como o veado do salmo, pelas águas frias dos regatos das montanhas, no sentido da visão distante e próxima do amor divino.   

O padre Giuseppe Barzaghi, O.P., dominicano, professor de Teologia fundamental e dogmática na Faculdade Teológica da Emilia Romagna e docente no Estúdio Filosófico Dominicano de Bolonha, na obra La maestria contagiosa, estudou o tema essencial do poder imaginativo de S. Tomás, demonstrando como o grande teólogo foi um mestre na cultura de imagens, enquanto discípulo de Aristóteles, que disse em De Anima, na tradução latina feita por Guilherme de Moerbeke, nihil intelligit anima sine phantasmate. O que isso significa? Nossa alma não entende nada sem imaginação. Quando tentamos entender algo, é por meio de uma conversio ad phantasmata. Devemos converter-nos à fantasia, segundo a relação entre a contemplação e a ação. E isso significa dar exemplo. É por isso que S. Tomás continua fascinante. Ele nunca deixa uma visão, digamos, teoricamente rígida, descoberta, a não ser reconduzindo-a à descoberta das imagens, que são os exemplos e formas de podermos compreender a vida e os outros, a que não podemos ser indiferentes.

 

Quando quer representar a atividade de nossa razão no conhecimento, O Doutor Angélico toma a imagem do voo dos pássaros e diz: há o pássaro que voa de forma circular e rodando, ou o voo que vai para frente e para trás, ou o voo que vai de cima para baixo e de baixo para cima. O movimento circular é o movimento contemplativo, que vai para frente e que liga a causa e o efeito, e que vai para trás, do efeito para a causa. De cima para baixo é a dedução, de baixo para cima é a indução. Lembrando o voo dos pássaros trazemos à mente todas as formalidades da atividade cognitiva, e compreendemos a importância da contemplação e da ação. Eis como S. Tomás de Aquino nos ensina a compreender a complexa realidade que nos cerca, a humanidade que nos enriquece, a dignidade que nos afirma e reconhece, a fé, o conhecimento e a ação que nos animam. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt., 5, 8).

 

Guilherme d’Oliveira Martins