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Guilherme d'Oliveira Martins
A presença do Padre Manuel Antunes

Graças ao Prof. José Eduardo Franco e ao Município da Sertã acaba de ser reeditada a obra “Repensar Portugal” da autoria do Padre Manuel Antunes, personalidade que teve um papel essencial, ainda antes de 1974, na preparação da democracia. Os seus textos são exemplo que não podemos esquecer. De facto, considerava ser indispensável garantir que a liberdade, o bem comum e a cidadania ativa fossem, numa sociedade pluralista, as traves-mestras da abertura, da emancipação e da liberdade da cultura. Assim, foi um dos membros ativos da comissão portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, que tanta importância teve na preparação da democracia portuguesa, estando “em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, neste livrinho sublime. Também Luís Lindley Cintra disse, de modo muito claro: “Leiam Repensar Portugal… é um livro importantíssimo, quase diria é único pela reflexão e pelo espírito que o anima”. Era a democracia que estava em causa, era a sua concretização que deveria ser objeto de reflexão e ação, uma vez que “a democracia é preciso merecê-la. Não pode constituir dádiva generosa de um dia trazida nas espingardas não disparadas e nos cravos não manchados de sangue do Movimento das Forças Armadas. A democracia é necessário traduzi-la, pelo esforço de todos – mas sobretudo daqueles a quem assiste maior responsabilidade política, social, económica e cultural – a democracia é necessário traduzi-la nos factos e nas instituições que objetivem e encarnem a verdade, a justiça, a fraternidade e a liberdade de uma comunidade verdadeiramente humana”. A atualidade desta reflexão do Padre Manuel Antunes põe-nos perante o tema atualíssimo da democracia – quando espreitam, um pouco por toda a parte, as tentações imediatistas e populistas, sob a falsa invocação do mero formalismo do voto. A legitimidade do voto é fundamental, mas tem de ser completada pela mediação permanente nas instituições democráticas. Os cidadãos têm de ser representados e de participar, têm de se sentir legitimados. Se o nosso autor não pôde antecipar o mundo das redes sociais, ou das “fake news” notícias falsas – conhecia muito bem os instrumentos subtilmente perigosos dos “reflexos condicionados” ou das “lavagens ao cérebro”. De facto, o “Grande Irmão” de George Orwell aparece onde menos se espera, “O Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley esconde as maiores perversidades anti-humanas. «Que Projeto-Esperança para Portugal?» constitui um conjunto de alertas que se projetam no nosso tempo – e que permitem encontrar respostas atuais, sem diabolizar os instrumentos novos de que dispomos. O que importa é não confundir meios e fins – de modo a colocar a dignidade humana no centro da vida democrática. Os seres humanos devem ser cidadãos e não súbditos.

Daí que uma “revolução moral” preocupasse este grande pedagogo da democracia. A justiça, a solidariedade, a liberdade e a honestidade deverão, por isso, orientar a vida das instituições: de modo realista, “renovando as instituições existentes – e não apenas mudando-lhes os nomes – e criando outras que se imponham”. Partindo do país real e dos seus dualismos e limitações, há que encontrar alternativas – compreendendo a democracia como “um conceito axiológico e dinâmico, isto é, de ordem moral mas sujeito às vicissitudes das situações concretas em que é preciso venha a encarnar e a objetivar-se em leis, regulamentos e costumes em determinado espaço-tempo; que é um conceito de gradual ascensão histórica, sujeito, por conseguinte, ao acontecedoiro dos «dois passos para diante e um para trás»; que é um conceito que se define, na prática soberana, pela participação, cada vez mais larga e profunda, cada vez mais extensa e intensa, cada vez mais consciente e estruturada, nos bens e nos serviços, nos direitos e nos deveres, nas prestações e nas obrigações de todos para com a comunidade e da comunidade para com todos; que é um conceito operativo de um sistema que vive em função do meio em que historicamente se implanta…”.

A liberdade política, a justiça social e a gestão da prosperidade geral têm de se ligar, numa lógica humanizadora. Nesse sentido, o Padre M. Antunes definiu uma agenda, que pressupunha não encarar o Estado como novo Leviatã, produtor, planificador, omnipresente e invasor da esfera privada, pelo que se tornaria imperativo: desburocratizar, desideologizar, desclentelizar e descentralizar. Interiorizar a democracia obrigaria a assegurar a sua vivência no Estado e na sociedade civil. Ao Estado competiria revelar-se como consciência crítica da Nação, “na sua realidade de ser coletivo e histórico”. Não pode haver democracia sem haver consciência cívica, sem haver instituições representativas e mediadoras – só desse modo poderemos precaver-nos contra os perigos de manipulações e de condicionamentos ilegítimos. Num tempo em que a complexidade é a marca indelével do progresso humano, não podemos cair na tentação de resumir tudo a caricaturas da realidade. Veja-se o que acontece quando a via referendária se sobrepõe à ponderação rigorosa das consequências de decisões difíceis – que não podem ficar prisioneiras da tirania do número, da indiferença ou da demagogia…. É preciso tempo e reflexão.

“Sem crítica, a cultura instala-se no uniforme sem inspiração, no escolasticismo sem vontade de essencial, no dogmatismo sem nervo de verdade, e, por isso mesmo, no constante apelo à força do ‘braço secular’. Sem crítica, a querela instala-se de modo fútil: na rua e no palácio, na academia e na caserna, na cidade e no campo, durante a vida e post mortem”. Lendo este texto, e alargando-o a uma dimensão mais vasta do que o âmbito nacional, estamos perante um documento crucial para os dias que correm. O Padre Manuel Antunes compreendia muito bem o género humano e a vida das sociedades – e daí a pertinência e intemporalidade de “Repensar Portugal”. E impõe-se a pergunta: em que consiste o bem comum? “Na existência de estruturas e instituições que em determinada fase histórica sirvam ao uso, à dignidade e à dignificação da comunidade; na vontade de solidariedade que une todos os membros dessa comunidade, de forma que todos participem, na devida proporção, desse objetivo fundamental”. A encíclica “Pacem in Terris” de João XXIII e a constituição “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II são claras nesse sentido. Importará cortar o passo à alternância entre anarquia e tirania – “uma comunidade pode ser feliz sem viver propriamente numa abundância material de lés-a-lés”. Em suma, num tempo em que tanto se fala de austeridade, importa insistir na noção de sobriedade, que previne o desperdício e a corrupção, a injustiça e a exclusão, a desigualdade e a fragmentação social. À democracia e ao bem comum, haverá ainda de juntar um destino a cumprir – a universalidade. Que sentido teria a eminente dignidade humana se não fosse um valor universal? “Cada homem é uma exceção” – dizia Kierkegaard – também cada povo! E não fugimos à regra. A maior necessidade é assim uma renascença – ou seja, “vontade de retomar um certo fio de outros dados e dados que outros quebraram”. E é de cultura que devemos falar, de abertura de horizontes, de Europa e de mundo da língua portuguesa. Eduardo Lourenço chamou-lhe “Heterodoxia”, no sentido de liberdade de espírito. “Um país na verdade culto e com cerca de um milénio de história vivida atrás de si – e que história -, só se demitindo por completo e por completo desistindo de existir como um animal esgotado que se deita para morrer é que deixará de contar no concerto dos povos. Antes não». Eis o grande desafio a que temos de responder.

 

Guilherme d’Oliveira Martins