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Guilherme d'Oliveira Martins
O difícil caminho da paz.

Somos alertados pelo Papa Francisco na Mensagem do dia da Paz de 2024 para o facto de as máquinas inteligentes poderem “desempenhar as tarefas que lhes são atribuídas com uma eficiência cada vez maior, mas a finalidade e o significado das suas operações continuarão a ser determinados ou capacitados por seres humanos com o seu próprio universo de valores. O risco é que os critérios subjacentes a certas escolhas se tornem menos claros, que a responsabilidade de decisão seja ocultada e que os produtores possam subtrair-se à obrigação de agir para o bem da comunidade. Em certo sentido, isto é favorecido pelo sistema tecnocrático, que alia a economia à tecnologia e privilegia o critério da eficiência, tendendo a ignorar tudo o que não esteja ligado aos seus interesses imediatos”.

Não por acaso, esta mensagem do Dia Mundial da Paz entra em questões concretas, que mais não visam do que alertar a humanidade para uma grave situação que está a afetar todos. Por exemplo, “não se pode ignorar as graves questões éticas relacionadas com o setor dos armamentos”. Perante duas guerras com milhares de mortos e muitas destruições, lembra-se “a possibilidade de efetuar operações militares através de sistemas de controle remoto”, o que leva a uma “perceção menor da devastação por eles causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e destacada da imensa tragédia da guerra”. Por outro lado, instala-se um clima de indiferença e de cinismo, servidos pelo cibercrime, pela influência perversa das notícias falsas difundidas por redes sociais e por gigantescas operações assentes nos reflexos condicionados e de manipulação das vontades individuais. Torna-se necessário saber que “os sistemas de armas autónomos nunca poderão ser sujeitos moralmente responsáveis”, já que “a exclusiva capacidade humana de julgamento moral e de decisão ética é mais do que um conjunto complexo de algoritmos, e tal capacidade não pode ser reduzida à programação de uma máquina”. Torna-se, pois, “imperioso garantir uma supervisão humana adequada, significativa e coerente dos sistemas de armas”, bem como da “inteligência artificial”. Para que haja uma cultura de paz, é preciso, além do mais, que as novas tecnologias não contribuam para o desenvolvimento do mercado e do comércio numa escalada no sentido da loucura da violência e da guerra. Como afirma com ênfase o Sumo Pontífice, com rara lucidez, “as aplicações técnicas mais avançadas não devem ser utilizadas para facilitar a resolução violenta dos conflitos, mas para pavimentar os caminhos da paz”.

Não podemos baixar os braços na promoção do desenvolvimento humano integral. Daí a importância da educação para a prevenção do uso de formas de inteligência artificial, visando sobretudo a promoção do pensamento crítico. E diz o Papa, “é necessário que os utentes das várias idades, mas principalmente os jovens, desenvolvam uma capacidade de discernimento no uso de dados e conteúdos recolhidos na rede informática ou produzidos por sistemas de inteligência artificial”. Eis por que razão as instituições educativas e científicas são chamadas a ajudar os estudantes, os profissionais e os cidadãos em geral a assumir os aspetos sociais e éticos do progresso e da utilização das novas tecnologias. O uso dos novos instrumentos de comunicação não pode deixar de salvaguardar quer o risco da desinformação, as notícias falsas, quer a aparição de «medos ancestrais, que souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias», como referido em “Fratelli Tutti”. E o certo é que presenciamos o regresso de uma nova cultura dos muros, que subtilmente se vai reforçando contra o bom senso, a racionalidade e o respeito mútuo.

De facto, o Papa Francisco põe-nos perante a exigência de respondermos à pergunta “Como é Possível a Paz?”. Apesar de todas as resistências, somos levados a ter de reler os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos à luz da contemporaneidade. E, em lugar de otimismo ou de pessimismo, devemos encontrar nos nossos espaços de vida em comum e de cidadania soluções que contribuam para minorar o egoísmo, o consumismo cego, o ressentimento e o ódio, o medo dos outros e das diferenças. As novas tecnologias devem, assim, ser vistas como instrumentos ao serviço da dignidade das pessoas. Importa, pois, que não nos tornemos escravos dos robôs, como nos ensinou Georges Bernanos, pois, se tal acontecer, estaremos a destruir o sentido fundamental da memória e da humanidade. É, pois, “indispensável identificar os valores humanos que deveriam estar na base dos esforços das sociedades para formular, adotar e aplicar os quadros legislativos necessários” à presença das novas tecnologias e da inteligência artificial, envolvendo as “questões mais profundas relativas ao significado da existência humana, à proteção dos direitos humanos fundamentais, à busca da justiça e da paz”. 

Em síntese, a mensagem de Ano Novo deseja que o rápido “desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana”. Para criarmos uma cultura de paz impõe-se aos fiéis cristãos, aos crentes das várias religiões e às pessoas de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e “entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico”. Será possível?

 

Guilherme d’Oliveira Martins