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Guilherme d'Oliveira Martins
Reconstruir a confiança

Na mensagem que enviou à COP-28 (Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas), realizada em Doha, o Papa Francisco afirmou: “Estamos a trabalhar para uma cultura da vida ou da morte? Com veemência, vos peço a vida, escolhamos o futuro! Escutemos os gemidos da terra, demos ouvidos ao grito dos pobres, prestemos atenção às esperanças dos jovens e aos sonhos das crianças! Temos uma grande responsabilidade: garantir que não lhes seja negado o próprio futuro”. (…) “É essencial reconstruir a confiança, fundamento do multilateralismo. Isto vale tanto para o cuidado da criação como para a paz: são as questões mais urgentes e estão interligadas. (…) Relanço uma proposta: «Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo Mundial, para acabar de vez com a fome» (Fratelli tutti, 262; Populorum progressio, 51) e realizar atividades que promovam o desenvolvimento sustentável dos países mais pobres, combatendo as mudanças climáticas”. (…) “Que sejais os artífices duma política que dê respostas concretas e coesas (…). Porque o poder serve para isto: para servir. E não adianta conservar hoje uma autoridade que amanhã será recordada pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário (Laudato Si’, 57)”. (…) “Também eu, que trago o nome de Francisco, gostaria de vos dizer com o tom veemente duma oração: deixemos para trás as divisões e unamos forças! E, com a ajuda de Deus, saiamos da noite das guerras e das devastações ambientais para transformar o futuro comum numa alvorada de luz.”.

Neste Advento, o mundo apresenta-se incerto, imprevisível e distante dos Evangelhos. Precisamos de sinais de esperança. No prefácio que assinou ao volume “Ilustrissimi – Cartas do Patriarca”, da autoria do Papa João Paulo I, Albino Luciani, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça pergunta: “Qual é a tarefa do cristianismo após a fratura da modernidade?” Luciani sublinha-o na carta a Gilbert K. Chesterton: é urgente ajoelhar-se não diante daquele Deus que «pela secularização é chamado de “morto”», mas «diante de um Deus mais atual que nunca». Isto, porém, exige a sabedoria de compreender como o «ponto de vista» se tornou culturalmente complexo. É por isso uma responsabilidade gravíssima da Igreja reativar processos culturais que desaguem na criação de códigos e chaves de leitura hermenêuticamente consistentes e vitais. Por isso, precisamos da literatura (de Mark Twain a Carlo Collodi), não como um ornamento agradável, que, tudo somado, seja supérfluo, mas antes como estrutura portadora do nosso estar no mundo e da irrenunciável responsabilidade que o cristianismo transporta, como sustentava Albino Luciani, de «fazer refletir!».

Compreende-se o gradualismo, mas é o inconformismo que tem de se constituir como marca e método. A sociedade humana evolui e o universalismo da dignidade das pessoas obriga à releitura da encíclica “Pacem in Terris” de S. João XXIII, numa conjuntura como aquela em que vivemos e em que cultura da paz é subalternizada e os direitos e deveres fundamentais são esquecidos. Quando o Papa apelou a “todos” em Lisboa, fê-lo, para além de qualquer formalismo, apontando para um humanismo pleno de pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, que tendo como consequência a ecologia integral, afirmada em «Laudato Si’» e na exortação apostólica Laudate Deum, sobre o cuidado relativamente ao planeta, exprime profunda preocupação pela nossa casa comum, porque “não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando-se dum ponto de rutura”.

D. José Tolentino Mendonça, no prefácio referido, lembra ainda que, no mesmo ano em que foi publicado “Illustrissimi. Cartas do Patriarca”, de Albino Luciani (1976), foram dadas à estampa as “Cartas luteranas”, de Pier Paolo Pasolini. Os dois livros são verdadeiros sismógrafos, já que Luciani alerta profeticamente para a necessidade de atenção às pessoas, enquanto Pasolini adverte para a «reviravolta antropológica promovida pela sociedade dos consumos e consumada pela desapiedada terraplanagem concretizada pelos seus processos sociais e culturais de homologação». A obra de Pasolini é um livro-denúncia, tornando evidente a originalidade do livro de Luciani, que faz uma leitura crítica da realidade, enquadrando-a num horizonte necessariamente dilatado, «surpreendentemente convocado à redenção, pois Deus não desiste de procurar o Ser Humano». Italo Calvino escreveu que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer». Como poderemos responder aos desafios que estão lançados pela crise económica e financeira, social e cultural, pelas guerras que se eternizam, pela permanência de uma estranha cegueira relativamente à indiferença, à escalada da violência e à destruição da natureza e do meio ambiente? Somos chamados à ação e às bem-aventuranças. «Bem-Aventurados os pacificadores porque serão chamados filhos de Deus» (Mt., 5, 9).

 

Guilherme d’Oliveira Martins