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Pe. Alexandre Palma
Thymós

Parece-me estimulante que o conhecido cientista político Francis Fukuyama tenha dedicado o seu último ensaio à questão da Identidade. E que o relacione com o que chama: Exigência de dignidade e a Política de ressentimento (Dom Quixote, 2018). Para lá de um juízo acerca do mérito da obra, tomo-a como sintoma de que por aqui passa uma das grandes questões do nosso tempo. O autor reflecte-a à luz da política e da economia. Talvez se pudesse continuar o exercício, estendo-o ao campo cristão e eclesial. Também este atravessado hoje, porventura com renovada intensidade, por retóricas de ressentimento e projectos identitários.

Fukuyama recorre ao mundo antigo para esclarecer um engano do presente. Tornou-se comum considerar que o comportamento humano se rege pela razão e pelo desejo. Estas duas forças explicariam o que nos leva a agir de uma determinada forma. A economia, por exemplo, assenta no pressuposto de que agimos racionalmente em ordem a satisfazer os nossos desejos. Cá está: razão e desejo. Na política, tudo somado, não seria muito diferente. Este pressuposto, contudo, exibe hoje fragilidades, não sendo capaz de explicar de forma convincente toda a acção humana que desafia a lógica da simples satisfação de um desejo pessoal. Os exemplos são de Fukuyama: «A teoria económica não explica satisfatoriamente que um soldado se lance sobre uma granada, ou um bombista suicida, ou toda uma série de outros casos em que algo mais do que o próprio interesse material parece estar em jogo».

Recorrendo à República de Platão, Fukuyama recorda que a alma humana não é só composta por razão, nem só por desejo, mas que também o é por thymós. Thymós seria a sede do reconhecimento e do valor. Hoje activada enquanto identidade interior que demanda reconhecimento público e, portanto, político. É esta terceira face da alma humana que terá caído hoje no esquecimento. Com thymós queriam já os antigos gregos afirmar que o comportamento humano também se rege por juízos de valor. Assim, «os seres humanos não querem apenas coisas externas a eles próprios […]. Eles também anseiam por juízos positivos acerca do seu valor e dignidade». No fundo, thymós é aquela parte da alma que procura reconhecimento. E ela é eficaz, podendo mesmo dominar quando se acha em contradição com a razão e o desejo.

Talvez aqui esteja uma das razões por que actuamos e vemos actuar de uma forma que desafia a razão e que o desejo egoísta não consegue explicar. Talvez aqui esteja uma das razões para experiências frustradas de diálogo social e eclesial. É que, esquecidos de que também somos thymós, estaremos, por vezes, a falar ao lado errado da alma humana. Recordar que também somos thymós é urgente. Decerto isso será útil para nos conhecermos melhor a nós próprios e perceber as nossas dinâmicas de procura de reconhecimento. Mas sê-lo-á também para mobilizar o agir humano para o bem neste mundo, aberto a uma transcendência que, essa sim, é garantia definitiva de que temos valor.