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Pe. Alexandre Palma
Furar o cerco

Observar um animal cercado diz muito sobre essa situação. O seu instinto não o engana: não é possível viver-se cercado. Descobrir-se sem saída gera nele uma ansiedade que o cega e essa cegueira transforma-o em algo que ele não é. Uma vez cercado, até o mais domesticado dos animais salta milhares de anos de evolução da espécie e resgata tudo o que de mais selvagem há na sua natureza. Cercado, um cão volta a ser lobo e um gato volta a ser tigre.

A natureza do cerco foi bem compreendida por Sun Tzu, autor do clássico A arte da guerra (séc. V a.C.). Dizia: «Quando cercares um exército deixa-lhe uma saída livre. Não pressiones demasiado um inimigo desesperado». A nossa história documenta-o até à saciedade. Aprimorados como táctica de guerra, os cercos comportaram sempre altos custos para todas as partes. Os que cercavam eram, não raramente, tocados pela fome, pela peste e pelo cansaço. Por isso mesmo, impunha a prudência militar que esta táctica fosse implementada apenas quando havia a expectativa de rendição breve por parte do adversário. Os que se achavam cercados padeciam todas as consequências do isolamento imposto. Eram vergados pela violência e pela escassez crescente de bens essenciais, a ponto de se combaterem entre si na luta pelo pouco que restasse desses bens.

Se convoco para aqui a imagem do cerco não é, seguramente, para discorrer sobre história militar. Trago-a, ao invés, porque ela interpreta algo do que vimos sentindo entre nós. Digo-o da nossa vida pessoal, social, mas também eclesial. Podemos sentir-nos cercados pela agenda, pelas expectativas, pelos problemas, pelas solicitações. Pode a sociedade sentir-se cercada pelo novelo político, pela volatilidade económica, pela crise demográfica, pelo medo do futuro. Pode a Igreja sentir-se cercada pelo mundo que a escrutina, pelo cansaço dos seus membros, pelo tamanho da sua missão, pela diversidade contrastante de sensibilidades no seu seio. Vivemos cercados. Mesmo quando tal não é bem assim, temos essa impressão. E não é possível viver-se cercado.

Da história militar aprendemos não apenas a caracterizar um cerco. Bem mais importante do que isso, o passado sugere-nos formas de o furar. Não são muitas, reconheça-se. E, além disso, não há formas fáceis de se libertar dessa situação. A quem se acha cercado, primeiro impõe-se resistência e lucidez. Sem isso, nada feito. Depois impõe-se coesão. Caso contrário, na luta desesperada pela própria sobrevivência, a cidade combater-se-á a si própria. É ainda necessária coragem, sobretudo de alguns batedores que possam, com inteligência e agilidade, abrir brechas no anel que os rodeia. Nuns casos, enfrentava-se o adversário cara-a-cara, mas com efeitos nunca garantidos e sempre com altíssimos custos. Noutros casos, tentava-se uma manobra criativa, como a construção de túneis. A profundidade é sempre uma saída. Em síntese, para furar um cerco será preciso lucidez e coragem, disciplina e imaginação, coesão e agilidade.

Não gostaria que se sedimentasse entre nós a mentalidade de cerco. Digo-o a respeito das várias dimensões da vida, mas digo-o muito em particular da vida eclesial. Um encastelamento do testemunho do Evangelho é uma contradição insuperável. A Igreja não se pode identificar com a imagem de uma cidade sitiada. Como um animal acossado, ela transformar-se-ia naquilo que não é. Por isso, urge furar todos os cercos. Tanto os reais como os imaginários. Tanto aqueles que, porventura, nos abordam de fora como aqueles cercos que montamos em nossa própria casa. É que há ainda uma outra forma de furar cercos que a história militar desconhece e que só a imaginação e a fé podem conceber: levantar voo. Também assim, por cima, se vai para lá da linha de cerco. Talvez seja mesmo disto que precisemos.

 

Pe. Alexandre Palma
foto:Ryoji Iwata na Unsplash