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Pe. Alexandre Palma
Princípio existencial de Pascal

Li recentemente, de Josep M. Esquirol, a seguinte interrogação: «a que se deve o facto de tantas vezes a vida quotidiana ter sido considerada uma vida de segunda ordem»? (A resistência íntima, Ed. 70, pg. 54) Esta não é apenas uma questão. É igualmente uma crítica e um projecto, que no seu caso passa por colocar a «quotidianidade» no centro da nossa preocupação. Parece-nos, com demasiada frequência, que importante é mesmo o que é extraordinário, incomum, excepcional, raro, único. Há, reconheça-se, razões válidas para que assim seja. Mas e o resto? Que dizer do tal quotidiano, que é quase tudo nas vidas que levamos? Isso seria apenas a tal «vida de segunda ordem»: como que um intervalo no carácter decisivo ou uma suspensão na seriedade da vida.

Há algumas semanas o Papa Francisco publicou a Carta Apostólica Sublimitas et miseria hominis (Grandeza e Miséria do Homem), dedicada a Blaise Pascal (1623-1662). Poucos saberão ao certo quem ele foi. Dele ouviram falar quantos estudam mais intensamente matemática e física. Dele terão lido algum Pensamento quantos se interessam pela filosofia. Afora isso, talvez pouco. Será, porventura, essa uma das razões pelas quais quis o Papa Francisco resgatá-lo das teias do esquecimento. Mas fê-lo, sobretudo, porque há neste pensador francês do século XVII qualquer coisa de imorredouro e, portanto, «capaz de estimular os cristãos do nosso tempo e todos os homens e mulheres de boa vontade na busca da verdadeira felicidade». A carta oferece uma síntese bela da vida de Pascal e quase permite escutar a sua voz, tal é o número e a profundidade das suas citações. Nela descobrimos um cientista filósofo, um filósofo místico, e um místico activo, sobretudo na prática consequente da caridade. Esta mistura de mundos aparentemente antagónicos desmonta muitos dos nossos clichés, e confirma quanto se afirma no início do texto: «é o paradoxo que está no centro da reflexão e mensagem de Blaise Pascal».

Pascal respondeu, com alguns séculos de antecedência, à interrogação de Esquirol. Para ele coisa séria não era, como seria de esperar, a sua actividade de filósofo. Pelo contrário, isso era divertimento e actividade lúdica. Coisa séria e «mais filosófica era viver de forma simples e tranquila». Isto sim era, para Pascal, o que de mais decisivo havia na vida. O grande pensador francês desata assim o nó das nossas expectativas e mostra um pouco da sua actualidade. Nele o quotidiano já se elevara ao estatuto de vida de «primeira ordem».

Poder-se-á, então, ensaiar um sentido existencial ao chamado «Princípio de Pascal». Este postulado da física ensina que a pressão feita num ponto de um fluido se transmite a todos os outros pontos desse mesmo fluido. Para lá das múltiplas aplicações que tal postulado tem nos campos da ciência e da tecnologia, ele pode ainda inspirar algo sobre a arte de viver. O fluido é, nesta analogia, a própria vida. O pequeno ponto onde se exerce pressão é tudo o que na vida houver de ordinário, comum, banal, frequente, repetitivo. A pressão que aí se fizer transmite-se a toda a vida. É assim que hoje, graças aos contributos de Pascal, temos força para elevar grandes cargas. E sim, ainda me estou a referir à arte de viver.

 

Pe. Alexandre Palma