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Guilherme d'Oliveira Martins
A mediação das instituições...

Pode dizer-se que as Bem-Aventuranças correspondem a um dos textos centrais da civilização moderna. Muitos autores o têm salientado, pondo a tónica na defesa da dignidade humana e na definição de um programa de vida, assente na entrega e no respeito mútuos, na atenção e no cuidado, numa palavra, na lei do amor (agapé). «Naquele tempo, Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos, e deteve-Se num sítio plano, com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia. Erguendo então os olhos para os discípulos, disse: Bem-aventurados vós, os pobres, porque é vosso o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem e insultarem e proscreverem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. Alegrai-vos e exultai nesse dia, porque é grande no Céu a vossa recompensa. Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas. Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação. Ai de vós, que agora estais saciados, porque haveis de ter fome. Ai de vós, que rides agora, porque haveis de entristecer-vos e chorar. Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem. Era assim que os seus antepassados tratavam os falsos profetas» (Lc., 6, 17 – 20-26). Estamos perante uma grande multidão, ávida dos ensinamentos do Mestre – e o que é proposto tem a ver com a recusa da servidão do ter e com o primado do ser. O que importa é preservar a compreensão do outro, como a outra metade de nós, o serviço dos outros e a entrega como modo de entendimento de que o tem mais valor é o que não tem preço. Como libertar-nos do imediato e da servidão, do que é passageiro e perecível? E a alegria proposta é a alegria genuína do culto dos valores perenes.

Nos tempos atuais, a incerteza, o imediatismo, a indiferença prevalecem. E essa indiferença traduz-se num estranho relativismo, em que os valores éticos se tornam realidades quase incompreensíveis. E é esse vazio, que o escritor Hermann Broch (1886-1951) retrata em “Os Sonâmbulos”, perguntando: “Num mundo sem ética, como poderemos ter uma relação ética com o mundo?” E assistimos ao paradoxo de um trânsito para o populismo, que se transforma numa crença absurda na pura ilusão. Que foi a crise financeira recente senão a ilusão sobre a riqueza que não era criada? As chamadas engenharias financeiras mais não eram do que um modo de todos se enganarem sobre um momento mágico que o futuro nos reservaria. E como o momento mágico não apareceu, houve que teorizar sobre a austeridade, como sacrifício dos mais pobres, sem que houvesse uma preocupação séria em pôr os recursos ao serviço do bem comum, mercê de investimentos reprodutivos e da recusa do endividamento. E que vemos nesse texto de Broch? A reflexão sobre a ausência e sobre a nostalgia da referência livre e responsável das bem-aventuranças. Compreende-se, pois, que o célebre Sermão da Montanha se torne uma referência fundamental – quanto mais não seja pelo esquecimento ou pela indiferença. E a nostalgia da totalidade ou a perda de sentido tornam-se motivo para o apelo cego a uma qualquer tábua de salvação. O populismo, a xenofobia, o medo do outro e das diferenças, a absolutização das identidades entram na ordem do dia. E daí a crise da democracia, que é a extensão do vazio de valores, quando este chega à vida quotidiana da sociedade. E insista-se no primado da pessoa humana, que é a chave do Sermão da Montanha, mas também na dimensão comunitária do bem comum. S. João XXIII dizia: «O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana». Estamos perante a referência ao respeito pelos direitos e deveres fundamentais da pessoa humana. Nestes termos, os poderes públicos orientam-se no sentido do respeito, da harmonização, da tutela e da promoção dos direitos invioláveis das pessoas, prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Por isso, se uma autoridade não reconhecer os direitos ou os violar «não só perde a razão de ser, como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência», como insistia João XXIII. Compreende-se a importância da liberdade de consciência, da liberdade religiosa, da atenção aos sinais dos tempos e do entendimento de que as instituições mediadoras são pedras angulares para uma sociedade de amor e de respeito mútuo. Falando de instituições mediadoras, onde ontem se falava em corpos intermédios, é a ligação entre representação e participação das pessoas e dos cidadãos que está em causa, do mesmo modo que a necessária ligação entre legitimidade do voto e legitimidade do exercício. Como as Encíclicas Papais nos ensinaram e o Concílio Vaticano II lembrou magistralmente é de mediações atuantes e de instituições fortes que precisamos.