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Pe. Alexandre Palma
Liturgia: mestra espiritual

Foi já há alguns anos, pelos inícios do seu pontificado, que o Papa Francisco começou por se referir à «classe média da santidade». Sei bem que a expressão logo causou hesitações, por parecer a alguns que assim se aligeirava a excelência e a exigência da vida santa. Mas julgo que esse temor não interpreta bem o que, com essa formulação, se quer indicar. Pelo contrário, vejo nela uma intuição que necessitamos, com urgência, de aprofundar. «Classe média da santidade» não quer dizer mediania e, muito menos, mediocridade. «Classe média da santidade» quer antes dizer o alcance sagrado e espiritual de todas as dimensões normais de uma vida normal. Esta santidade decide-se pela exemplaridade nos pequenos gestos; pela luminosidade nas pequenas palavras; pelo heroísmo nos pequenos combates; pela caridade nas pequenas dádivas; pelo martírio nos pequenos testemunhos; por uma intimidade orante activa em tudo o que é dado viver. Em síntese, a sua grandeza está escondida na escala diminuta dos lugares onde se exercita. Porque, como recorda o Evangelho, pequenas sementes dão grandes árvores (cf. Lc 13, 18-19).

Estilos de vida acelerados, como cada vez mais tendem a ser os de hoje (especialmente em contexto urbano), precisam de uma proposta assim. Daí a actualidade da intuição do Papa. Engolidos pela voragem de um tempo que nos devora, e tantas vezes sem efectiva possibilidade de quebrar essa espiral anestesiante, resta-nos virar o feitiço contra o feiticeiro. Resta-nos dar alcance espiritual a tudo o que parece distrair-nos dessa fome de mais que trazemos em nós. Resta-nos, então, reconhecer no meio onde estivermos, qualquer que ele seja, o palco possível de uma vida vivida em Deus.

Percebo, contudo, que para lá de objectivos, precisamos de pedagogia para os alcançar (verdade básica, mas por vezes esquecida na nossa pastoral). Para se dar assim sentido de grandeza espiritual à normalidade de todas as coisas, precisamos de mestres que no-lo ensinem a fazer. Creio que a liturgia pode muito bem ser um destes pedagogos no caminho para uma autêntica «classe média de santidade». Creio que uma liturgia que nos eduque a viver espiritualmente as realidades ordinárias deste mundo poderá ser essa escola onde se aprende a tudo viver com renovado espírito cristão. Nela aprendemos a viver espiritualmente o rotineiro e repetitivo, porque também ela o é. Nela aprendemos a fazer festa de fé com as realidades deste mundo, tal como o faz a Igreja quando celebra. Nela reaprendemos a viver sabiamente cada etapa e cada estação, à imagem do que sucede com os vários tempos do ano litúrgico. Nela educamos o olhar sobre o outro como próximo e visita de Deus, tal como na assembleia litúrgica o estranho se transforma em irmão. No fundo, uma «classe média da santidade» pede uma espiritualidade litúrgica. Pede um lugar onde o excepcional de Deus se dê no comum de gestos e palavras de nós bem conhecidos, porque por nós muito repetidos. Pede familiaridade entre vida e liturgia, para que na liturgia se celebre a vida e para que na vida se espelhe a liturgia.