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Guilherme d'Oliveira Martins
Os apóstolos pregaram o arrependimento…

«A Anunciação a Maria» de Paul Claudel (1868-1955), traduzida para português por Sophia de Mello Breyner Andresen (Aster, 1960), é uma obra emblemática, na qual o mistério do sagrado entra em diálogo direto com as angústias e as incertezas do mundo da vida. Estamos no âmago do teatro, em que o sagrado e o profano se entrecruzam num paradoxo permanente. Como afirmou Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde): «Em Claudel, a ação é o fruto da contemplação, que conserva ontologicamente o seu primado, como o lirismo conserva também a supremacia, ao longo de toda a parábola dramática claudeliana». Antes de tudo, há uma história de ciúme entre Mara e a sua irmã Violaine. Esta está noiva de Jacques Hury, que Mara ama em segredo. O pretexto para a intriga amorosa é um beijo que Violaine troca com Pierre de Craon, arquiteto das grandes catedrais, que contraíra a mais terrível das doenças do tempo, a lepra. Por esse ato de consagração, Violaine contrai a lepra também e torna-se indesejada. Mara casa com Jacques, mas eis que morre o filho de ambos, o que a leva, em desespero, numa noite de Natal, Mara a ir ter com Violaine, que vive numa caverna, dedicada à oração. Mara tenta a intercessão de Violaine para que um milagre possa salvar o pequeno. E a verdade é que as preces de Violaine permitem fazer regressar a criança à vida. Mas Mara esta não suporta esse desfecho e mata Violaine, não sem que esta consiga para a irmã a Graça do perdão do pai e do marido. Tudo, enquanto, inexplicavelmente, Pierre Craon fica curado da lepra. E Mara consegue finalmente a paz de consciência, ao som do Angelus – o Anjo do Senhor veio anunciar a grande notícia a Maria.

Claudel foi diplomata, com uma carreira brilhante, em Praga, Francoforte, Hamburgo, Xangai, Rio de Janeiro, Copenhaga, Tóquio, Washington e Bruxelas, irmão de Camille, a discípula favorita de Rodin, viveu um dilacerante drama familiar, que culminaria na declaração da loucura da grande escultora. Apesar de consagradíssimo, Claudel viveu a angústia existencial, que o levou a assumir a sua «arte poética» como um condomínio permanente entre o Pecado e a Graça, tornando-se um seguidor dos caminhos de Dostoievski. Longe de certezas ou de uma paz de espírito que alguns julgaram ver nele, como um facto redutor de uma autêntica capacidade dramática, Claudel deve ser relido nos dias de hoje, menos no contexto de algumas ambiguidades políticas, ligadas ao tempo da guerra, e mais na intensidade dramática que o aproxima de Bernanos – ele também profundamente marcado pelas contradições de um momento de traições. Como disse Maria de Lourdes Belchior, num ensaio luminoso sobre Claudel: «É impossível ter acesso ao teatro de Claudel se não concebermos o homem como criatura que vive sobre a terra a aventura da Graça. Impossível vislumbrar o significado da sua obra se não tivermos em mente que, para Claudel, tudo é figura ou sinal de Deus. E que à decifração da linguagem de Deus incarnada na criação e na história consagrou a sua obra. A mesma obsessão já assinalada se exprime, ao longo dos anos; “il n’y a pas un univers religieux et un univers profane. Il n’y a qu’une seule Revélation, transcrite en un langage innombrable, continue et reciproquement traduisible" (Présense et Prophétie)».

É especialmente tocante o entusiasmo posto por Sophia de Mello Breyner nesta tradução. Sente-se a proximidade do artista de «Arte Poética», numa fase da criação em que ouvimos, com a nitidez de uma palavra límpida, a compreensão da incerteza e da violência da injustiça. «Esta é a noite / Densa dos chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam». Longe de qualquer busca de doçura, o que há é a demanda de uma vida de exigência e contradição. Tomé e Pedro estão sempre presentes, antes e depois de pôr a mão na ferida aberta ou de ouvir o galo cantar, sempre perante o medo terrível que leva Mara ao ato de desespero. «Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança». É aqui que a poética de Sophia se aproxima de Claudel, numa busca silenciosa da esperança pelo equilíbrio da palavra e da justiça. E Violaine é símbolo da incerteza e da força, num gesto inusitado e necessário do beijo ostensivo ao leproso. Mara e Violaine são manifestações contraditórias da consagração, num mundo de imperfeições e dramas, marcado pela espada inexorável da tragédia. Como escreveu Claudel no pórtico de «Le Soulier de Satin», em português: «Deus escreve direito por linhas tortas».