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Guilherme d'Oliveira Martins
Frei Luís de França, O. P. (1936-2016)

Se há exemplo de alguém que fez da cidadania e da iniciativa solidária, aliados ao compromisso religioso, uma regra de vida foi o Padre Luís de França. Conheci-o sempre em ação, sempre disponível, sempre atento, preocupado com os outros e menos consigo mesmo, até aos últimos dias em que nos encontrámos. Engenheiro de formação, tornou-se um teólogo marcante desde que entrou na Ordem dos Pregadores, num momento crucial para a renovação da Igreja, que foi o do Concílio Vaticano II. Na generosa partilha de experiências e reflexões pôde ao longo da vida aprofundar, com testemunho vivo, o que os Padres Yves Congar e Marie-Dominique Chenu, ambos pregadores, ensinaram durante a vida, no sentido de pôr a dignidade humana em primeiro lugar, contra todas as incompreensões, fiéis à Boa Nova. «Porque tenho fé na Palavra de Deus, os obstáculos e os acidentes de percurso nada são» - afirmou Congar. Ou, como diria o Cardeal Henri de Lubac, «a catolicidade perfeita é um concerto, cujas vozes mais diferentes se completam e, em caso de necessidade, se corrigem reciprocamente».

O desenvolvimento humano, objetivo crucial da «Gaudium et Spes», esteve sempre presente no seu empenhamento ativo. Encontrámo-nos no Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, no Centro de Reflexão Cristã, e ainda nas iniciativas da OIKOS e da Metanoia. A seguir a 1974, lembramo-nos bem da sua presença na televisão em «Cada dia uma esperança». A sua inteligência, abertura e capacidade de compreender o mundo contemporâneo e os desafios de uma sociedade em rápida e profunda transformação foram fundamentais. Sempre o mesmo entusiasmo sereno. Compreender os «sinais dos tempos» significa, no fundo, ser fermento na massa, estar sempre disponível para lançar a semente à terra. Essa consciência da importância do mundo da vida e das mudanças de mentalidade levaram-no, aliás, a promover, a estudar e a tornar público um levantamento fundamental sobre o comportamento da população portuguesa no tocante à religião (1981). Tornava-se necessário conhecer bem o terreno que pisamos e a sociedade em que vivemos para encontrar respostas adequadas e justas. Não devemos esquecer que João XXIII, poucos dias antes de nos deixar, lançou o desafio fundamental da encíclica «Pacem in Terris», que a Igreja e o mundo têm ainda para responder. Para sermos agentes de Justiça e Paz precisamos de estar atentos a todos os sinais que nos vêm dos mais inesperados sentidos. E este «engenheiro de almas» sabia melhor que ninguém…

Atingida a que poderia ser a idade da reforma, o Padre Luís de França quis continuar ativo e partiu durante dez anos para Angola (2005-2015), onde desenvolveu trabalho pastoral e apostólico muito intenso na Mosaiko – Instituto de Cidadania e na Universidade Católica de Angola. E era para lá que desejaria regressar se a saúde o permitisse. Tinha uma força inabalável baseada na exigência de ir ao encontro dos outros, fazendo do cuidado a sua regra de ouro, com a alegria simples e genuína de quem sabia qual o caminho que trilhava. Todos aqueles com quem trabalhou e com quem partilhou saberes e experiências, a começar nos irmãos dominicanos, são muito claros a reconhecer as excecionais qualidades do Padre Luís de França – a inteligência sempre associada à capacidade de se dar e de compreender. A liberdade tinha de ser emancipadora. A igualdade deveria ser equilibrada. A responsabilidade teria de ser generosa. A solidariedade tinha de ser autêntica. Sempre o desenvolvimento como cuidado do futuro. Afinal, a entrega à terceira virtude, como a que realmente permanecerá, no sentido que S. Paulo nos ensina.

Frei Bento Domingues, O. P. recordou que foi com um poema de Frei José Augusto Mourão, outro saudoso amigo, que a memória de Frei Luís de França foi lembrada. E essa memória está bem presente. «Não pode a morte reter-te na cruz. / Não pode o mundo arrancar-me à raiz. / Ao pé de Deus hei de sempre viver. / Com Deus cheguei e com Ele vou partir. / Não pode a morte apagar o desejo / de ver a Deus face a face e viver. / A Deus busquei toda a vida / vivi de acreditar no infinito da vida. / Não nos reduz o escuro da noite. / Não pode o amor esquecer o que o altera. / Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos / já ouço a voz do amigo que vem. // A ti a vida me toma e transporta. / Teu sangue inunda meu corpo de paz. / Eu vejo as mãos do Senhor glorioso / nas minhas mãos a memória de Deus. // A Ti Senhor meus desejos regressam. / Findo o andar, disponíveis as mãos. / Abre meu corpo ao devir que não sei / eu chamo a esperança pelo nome de Deus»…