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Guilherme d'Oliveira Martins
O amor é uma coisa concreta

Há dias inaugurámos uma rua em Lisboa com o seu nome. O António Alçada Baptista foi um companheiro admirável, para quem o amor cristão não podia ficar no mundo das ilusões. «O amor é uma coisa concreta (…), uma ideia de Deus não se traduz num comportamento e, por isso, não pode ser uma religião. Alguns julgam que a verdadeira relação com Deus – como Deus é um ser superior, e os que se dedicam a isso, seres superiores -, voltam-se para as ideias, os silogismos, as lógicas, as abstrações. Ora, uma teologia abstrata é uma idolatria». Com António, percebíamos que Amor e Transcendência se ligam diretamente. E se hoje lemos a encíclica de Bento XVI «Deus é Amor» ou se deparamos com a proximidade do Papa Francisco, compreendemos a tripla dimensão do amor, agapé, filía e eros. E facilmente percebemos que a “teologia narrativa” (Chesterton, Bernanos, Mauriac, Greene) há muito que insiste nessa tripla dimensão, com naturalidade. Apesar de incompreendidos, os escritores souberam preparar o terreno para antecipar a evolução e para dar um sinal de fidelidade essencial aos seus contemporâneos. Contra todas as simplificações acomodatícias, a ligação entre vida e sentido, entre amor e dúvida, entre existência e drama leva-nos à valorização ética da dignidade da pessoa humana…

A memória prodigiosa de António Alçada enchia um serão ou tornava qualquer encontro um momento inesquecível. Felizmente que as foi escrevendo, pelo que uma parte das suas histórias não se perdeu. Mas ouvi-las naquela cadência que só ele sabia dar, e sentir a alegria do seu sorriso, nunca poderá ser esquecido pelos seus amigos. O Raul Solnado dizia-me na Igreja das Mercês, quando fomos dizer-lhe um até à vista, que se tinha divertido muito com o António e que a recordação que com que ficava era de contentamento. Todos sentimos o mesmo. Ele era assim, mesmo com as suas depressões cíclicas. Nada do que António dizia e contava era fútil ou superficial, como o atestam muitos dos diálogos dos seus romances (a começar em “Os Nós e os Laços”). O que estava em causa era o seu combate, como o de Jacob com o Anjo, pela liberdade e pela recusa de medos e sentimentos de culpa, que, para ele, eram inimigos da dignidade do ser e da responsabilidade. E a memória da sua voz e o calor da sua amizade estão bem presentes, como se ele estivesse para vir de novo ter connosco para dois dedos de conversa, como tanto gostava. Como dizia, gracejando, mesmo praticando as virtudes do ócio e as bem-aventuranças do lazer fartava-se de trabalhar. De facto, sempre o conheci multiplicando-se em atos generosos e genuínos no sentido mais nobre da palavra. E fazia-o serena e modestamente, sem se levar muito a sério, como confessava Alexandre O’Neill. Foi o melhor dos memorialistas do fim do século XX. Releiam-se os seus textos e veja-se como liga, com raríssima mestria, à realidade quotidiana o episódio aparentemente anódino, ao qual sabia sempre dar um significado em que a ética e a ironia se juntavam, naturalmente. Olhe-se o exemplo de “Peregrinação Interior”. Ao lerem-se os dois volumes, fácil é de perceber que o escritor partilha connosco o seu caminho e a sua coragem. E se teve de abrir caminhos para os tempos da liberdade (na “Aventura da Moraes” e nas revistas “O Tempo e o Modo” e “Concilium”), a verdade é que, no prazo largo isso permitiu criar novas pistas de ação e de empenhamento. O que pareceu ser, à partida, uma rutura dilacerante – lembrava José Tolentino de Mendonça, depois de ter falado, contra medos e culpas, na Graça original, que tanto entusiasmava o nosso querido António – tornou-se com o tempo um gesto necessário que é o único modo de favorecer novos compromissos. Temos muito a agradecer à lucidez e ao sentido profético de António Alçada Baptista. Aplica-se-lhe, afinal, o que disse do Padre António Magalhães, S. J.: “Naquele tempo morno, de ordem nas ruas e sobretudo nos espíritos, a sua presença fazia parte do imenso mistério da irresponsabilidade, do inconformismo e da loucura que marca, afinal, os homens de Deus”…