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Guilherme d'Oliveira Martins
«Saudades de Deus»

«Saudades de Deus» de Joaquim Carreira das Neves, O.F.M. (Presença, 2015) interroga a relação com a transcendência, a partir de um diálogo entre a razão e a fé, entre a ciência e a teologia. «Ao falar de saudades de Deus (diz o autor), quero exprimir que, longe de Deus, arrastamos connosco uma vida de saudade no Deus em que acreditamos. Parto do princípio de que a criação vem de Deus e vai para Deus, de muitas formas e feitios. E isto acontece com todas as religiões, isto é, com todos os que acreditam em Deus – num Deus pessoal ou impessoal». E assim parte do princípio de que não pode haver uma prova, centrada na tutela das igrejas e da tradição. A religião e a ciência são realidades autónomas. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa, reconhecidas hoje pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II, constituem fatores fundamentais de humanismo e de emancipação, colocando a dignidade humana no centro da vida em sociedade e do bem comum. O exemplo do Padre João Resina (1930-2010), engenheiro químico, membro do Centro de Física da Matéria Condensada, é significativo. Uma vez, António Marujo perguntou-lhe: «Um padre que ensinou física durante trinta anos sabe se, afinal, Deus não joga aos dados?». O sacerdote respondeu: «Sou discípulo de Kant. Ele diz que há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. E achou que a primeira depende da ciência. As más catequeses tiveram sempre a mania de misturar essa questão com a apologética. Kant achava que não, eu também. Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. (…) A segunda questão é o que devo fazer, como se deve viver para se ser Homem. Pergunto à História, às culturas, às religiões. A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo de tudo isto. Aí encontro a questão de Deus». A questão é claríssima, as esferas são distintas e a independência de espírito é nitidamente assumida, com todas as consequências.

Carreira das Neves, depois de invocar o Padre Resina e Kant, lembra igualmente António Lobo Antunes. E ouvimo-lo: «Sabe como me aproximei de Deus? Foi através dos físicos…». Em lugar de uma imagem material, «que é uma coisa que Deus não é», o escritor respondeu à pergunta sobre «quem é o Deus em que acredita», dizendo: «Deus é aquele que me diz ao ouvido que gosta de mim». Eis o ponto fundamental. Estamos no domínio da relação pessoal e da vida vivida. É a lei do amor (agapé). E é sobre essa realidade que o autor escreve, começando nos Salmos do Antigo Testamento («Junto aos Rios da Babilónia sentámo-nos a chorar» e «Como suspira a corça pelas águas correntes»…), prosseguindo na apresentação antropomórfica de Deus, nos livros do Génesis ao Livro dos Reis, que Harold Bloom considera obra-prima da História da Literatura, ao lado de Homero, Dante e Shakespeare («O Senhor apareceu a Abraão junto dos carvalhos de Mambré, quando ele estava sentado à porta da sua tenda, durante as horas quentes do dia…»). O caminho segue, com o episódio do «Deus Invisível» de Moisés, com Jesus Cristo perante os discípulos de Emaús e a incredulidade de Tomé, com o Deus do amor na pessoa de Jesus Cristo, com a interrogação sobre a dificuldade de amar os inimigos («O bom pastor dá a sua vida pela ovelhas»), com os Padres da Igreja e o seu ensino - «este o rochedo liso, polido e alcantilado, que não apresenta nenhum suporte ou saliência em que se fixe a nossa inteligência…». Como chegou até nós o monoteísmo cristão? Eis a preocupação fundamental do autor as escrever «Saudades de Deus». De um modo rigoroso, e invocando textos fundamentais, estamos perante um percurso que está ao alcance da inteligência crítica. Não se trata, porém, de deitar para trás das costas o que obriga a um sentido crítico atual. Temos de compreender que Deus é «passível de “máscaras”, criadas á “imagem e semelhança” dos homens». «Assim foi e assim será. Por isso mesmo, a figura do Papa Francisco procura redescobrir, nos nossos dias, a face mais fiel da pessoa de Jesus como resposta aos grandes problemas da humanidade». Razão tinha Agostinho de Hipona, ao dizer que o nosso coração é um eterno buscador de Deus, ou seja, só encontra paz no coração de Deus. «É eterna a busca da consciência humana pela sua verdade e identidade, Fonte a jorrar a água viva do Deus vivo»…