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Pe. Alexandre Palma
Conduzes-nos a Cristo?

Qualquer sociedade precisa de leis para se organizar e subsistir. A regulação das suas vidas precisa disso mesmo, de regras. Dito isto, importa, contudo, reconhecer que sociedades modernas (como a nossa) parecem abusar deste seu legítimo instrumento. Temos leis para tudo e para nada. Dá ideia de que as leis, como num organismo vivo, se multiplicam a si próprias, sem que já ninguém verdadeiramente controle a sua produção. Mas não é só o legislador que parece ainda perseguir a ilusão de poder resolver todo o novo problema com mais uma nova lei. São as próprias sociedades que, assoberbadas e assustadas por uma avalanche de novos problemas e desafios, alimentam esta fuga em frente, tentando de forma inglória travar pela via legal o que pela via legal não pode ser travado. O resultado é, na maioria dos casos, contraditório, pois esse excesso legislativo, longe de salvaguardar o bem social (ou bens) que deveria tutelar, parece, ao invés, escondê-lo no meio de um emaranhado legislativo ou por detrás de uma barreira burocrática. Isto acaba por produzir o contrário do efeito desejado: esse bem, que a lei deveria defender e propor, torna-se irrelevante para a sociedade que o deveria viver e valorizar. A lei, portanto, não só perde a sua eficácia, como gera precisamente o oposto daquilo para o qual ela existe.

Qualquer coisa disto já surge no Novo Testamento. Aí, com certeza, referindo-se sobretudo à Lei de Deus. Penso não apenas na denúncia de Paulo, para quem é claro que o espírito da Lei supera e tem de dar forma à letra da Lei. Mas penso sobretudo em Jesus, porque também ele foi confrontado com o excesso legislativo do seu tempo. Só isso explica que lhe tivessem perguntado que mandamento, entre os muitos então indicados (613 no total), era o maior (cf. Mc 12, 28-34; Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28). Com efeito, no judaísmo de então haviam-se multiplicado as leis e os preceitos a cumprir. Essa multiplicação fora motivada por uma justa vontade de traduzir em vida consequente os 10 mandamentos dados por Deus. Mas, segundo parece, ao tempo de Jesus, tal inflação instaurara um certo desnorte, não permitindo já distinguir o que, na forma de viver a Lei, era essencial do que o não era. Caindo-se, consequentemente, no legalismo que sacraliza indiscriminadamente tudo e que foi tão severamente denunciado por Jesus. Ou seja, dificultando a genuína vivência da Aliança que esses mesmos preceitos deveriam promover e sustentar.

Julgo que precisamos de estar despertos para esta questão. Não o digo pensando apenas no nosso ordenamento civil. Digo-o também pensando na vida eclesial. Também em Igreja nos sentimos, por vezes, assoberbados por novos problemas e desafios. Perante isto, também em Igreja corremos o risco dessa fuga em frente que espera tudo resolver e defender pela via da lei. Atenção: também em Igreja, a inflação legislativa gera e gerará o efeito contrário do desejado. Admitamos, pelo menos, que este risco existe, sobretudo naqueles domínios onde a lei eclesial mais se inflacionou (matrimónio; acesso à iniciação cristã; etc). As leis existem em função dos objectivos que com elas se pretendem alcançar. Elas existem, como o apóstolo Paulo não cessa de nos recordar, como pedagogia que nos conduz a Cristo (cf. Gl 4, 24). Não tenhamos, pois, medo de fazer esta pergunta a todas e cada uma das leis e preceitos que, como Igreja, nos impomos: conduzes-nos a Cristo?