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Pe. Alexandre Palma
Ler a vida

Setembro é mês de (re)começos. Tempo de retomar os ritmos de vida e de trabalho que ciclicamente abrandamos ou interrompemos pelo Verão. Assim é ano após ano. Assim é para a maioria de nós. Mas não para todos. Para alguns, este Setembro está bem longe se ser a repetição de realidades há muito conhecidas. É o início de um tempo novo. Penso em todos aqueles que agora iniciam uma nova fase nas suas vidas, um novo trabalho ou um novo ciclo escolar. Penso, sobretudo, em todos aqueles que ingressam agora na escola pela primeira vez. Que etapa fascinante e determinante para o resto das suas vidas! Onde a beleza dos seus sonhos de criança se entrecruza com a necessidade de enfrentar o medo e a ansiedade que, também por estes dias, os assaltam. Etapa marcada, possivelmente, por um novo professor, por novos colegas, por uma nova escola. Etapa marcada, sobretudo, pelo muito que de novo se vai aprender: os primeiros números e operações matemáticas; as primeiras letras e a iniciação à leitura.

O acto de ler, simples e banal como é, transporta consigo uma enorme carga simbólica. Talvez nem sempre disso nos dêmos conta, de tal modo nos habituámos a explorar o seu lado prático. A relação que estabelecemos com um texto acaba por ser uma óptima parábola da relação que temos com a vida. A um primeiro nível, parece evidente que é o leitor quem lê e decifra um texto. Aí o texto é passivo, de tal forma se encontra exposto à interpretação de quem o lê. Mas, a um outro nível, o inverso também se verifica. Há certos textos (os bons!) que agarram o leitor de um tal modo que, às tantas, é este quem fica refém do que lê. Há obras que irradiam uma tal potência de luz que, às tantas, é o texto quem desvela e interpreta o leitor. Neste sentido, poder-se-á mesmo dizer que «o texto cria o seu próprio leitor» (E. Salmann), porque delicadamente o vai moldando e dando forma interior. Haveremos de reconhecer que parte do que somos se fica a dever às leituras que fizemos (ou que deixámos de fazer). Daí que a leitura seja tudo menos um passivo absorver de informações por parte do leitor. Nela leitor e texto lêem-se e interpretam-se um ao outro.

Ora, a vida é como um texto que temos de ler e pelo qual somos lidos. Também a vida se compõe de muitas realidades elementares, tal como um texto se compõe de palavras e as palavras se compõem de letras. Também na vida essas realidades elementares se combinam de múltiplas formas, tal como as mesmas letras podem formar palavras muito diferentes. Também na vida temos de ir decifrando o sentido escondido na sucessão dos seus acontecimentos, tal como na leitura vamos interpretando o significado de um encadeado de palavras. A leitura da vida segue, pois, uma lógica em tudo semelhante à da leitura de textos.

Neste tempo de regressos e recomeços, deveríamos não apenas voltar às rotinas que nos preenchem os dias. Deveríamos ainda voltar ao nosso primeiro dia de escola. Para reanimarmos em nós esse encanto que torna as crianças capazes de experimentar tudo como se fosse sempre a primeira vez. Para reaprendermos a arte da leitura. Para relermos de novo a vida com a mesma atenção com que uma criança lê os seus primeiros textos. Nem sempre nos daremos conta, mas uma das perguntas que Jesus mais repete nos Evangelhos é «Não lestes…»? Di-lo, sobretudo, aos fariseus no contexto das controvérsias em torno da interpretação da Lei. Seja-me permitido, contudo, converter esse dito polémico de Jesus num conselho seu a que assumamos a leitura como algo vital. Porque a leitura está inscrita na vida e é decisiva para uma autêntica arte de viver.

 

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