Artigos |
Guilherme d'Oliveira Martins
Sophia de Mello Breyner Andresen
Com que emoção, ouvimos Sophia ler o conto «O Anjo de Timor» sobre um liurai que todas as noites se sentava na soleira da sua porta à espera de um sinal de Deus. Eduardo Lourenço afirmou, aliás, que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Estamos perante uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos a sede de justiça, que leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco Sousa Tavares disse, na melhor fórmula que conheço, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". O autor de «O Labirinto da Saudade» diagnosticou ainda "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional". Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar. Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. E lembremo-nos do entusiasmo posto por Sophia na tradução de «Anunciação a Maria» de Paul Claudel. Sente-se a proximidade relativamente ao artista de «Arte Poética». «Esta é a noite / Densa dos chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam». Longe da exclusiva busca de doçura, o que há, sim, é a permanente demanda de uma vida de drama, de dúvida e de contradição. Tomé e Pedro estão sempre presentes, antes e depois de pôr a mão na ferida aberta ou de ouvir o galo cantar, sempre perante o medo terrível que leva Mara ao ato de desespero perante Violaine. «Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança». É aqui que a poética de Sophia se aproxima e se afasta de Claudel. Aproxima-se porque há a procura silenciosa da esperança no equilíbrio da palavra e da justiça, nunca a confusão com qualquer certeza intolerante. Mas distancia-se, uma vez que não pode haver ambiguidade na luta agónica. Violaine é símbolo, a um tempo, da incerteza e da força, num gesto inusitado e necessário do beijo ostensivo ao leproso. O tema da Graça é na poesia de Sophia um elemento essencial. E o sinal de Deus que o liurai esperava veio e renasce em cada dia. É a liberdade, a paz, a compreensão e o amor que enchem de sentido a vida.