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Pe. Alexandre Palma
O que fica da crise que passa?

Temos vivido tempos de crise económica e social declarada. Nisto temos estado de acordo, mesmo quando divergimos quanto às causas dessa crise e, sobretudo, quanto aos modos de a ultrapassar. Agora, porém, talvez estejamos a entrar num tempo em que até esse acordo se quebra. Enquanto alguns persistem na denúncia da crise que afecta a vida de tantos, outros parecem já ver e anunciar para breve sinais de um novo ciclo. Ou muito me engano, ou o nosso espaço público estará, nos próximos anos, crescentemente saturado com sonoras discussões entre aqueles para quem a crise é presente e aqueles para quem a crise é passado. E se ambos tiverem razão?

Estou convencido de que o efeito mais nefasto desta crise está na desigualdade social que ela veio acentuar. Para uns, a crise passa, como todas as crises antes desta. Mas para outros, mais expostos aos seus efeitos, ela ficará ainda durante uns tempos e prolongará as suas marcas. Talvez isto ajude a perceber como a dita crise possa ser passado e presente em simultâneo. É que não basta saber se ela já passou (ou não). Importa ainda perguntar: para quem é que ela passou (ou não)? Isto porque não há crise em abstracto, mas sempre em vidas concretas de pessoas concretas. E no concreto, haveremos de reconhecer que, tal como a crise não afecta a todos por igual e da mesma forma, assim também a sua desejada superação não acontece para todos ao mesmo ritmo e do mesmo modo, facto que serve para amplificar ainda mais a mencionada desigualdade.

Como antídoto para este entorse social, urge reanimar a consciência do bem comum, tão solidamente sublinhado pela doutrina social da Igreja. Importa sobretudo encontrar formas sociais e políticas de o salvaguardar e construir na realidade. É muito inquietante que, de acordo com um estudo divulgado em Janeiro passado, sejam os mais ricos e os mais instruídos quem se mostra mais insensível ao valor da solidariedade. Uma suposta elite (económica e cultural) assente numa visão individualística de vida, desconectada da procura do maior bem possível para o maior número possível, será bem um sintoma de como a ideia da desigualdade (e não apenas a sua realidade) vem ganhando terreno entre nós. Se o que fica da crise por que passamos for mesmo uma sociedade mais desigual, acompanhada de uma qualquer forma mental de normalização desse facto, então na economia morará o mais pequeno dos nossos problemas. Então, mais que a nossa riqueza, foi a nossa humanidade que se desvalorizou. Mas se o que ficar for a dolorosa percepção de que «não nos salvamos sozinhos» e de que a vida social também não escapa a esta lei, então resta-nos esperar que pelo menos isto não passe!