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P. Duarte da Cunha
Porque se diz que a crise é antropológica?

Temos ouvido dizer que a actual crise económica tem que ver com uma crise moral e que está, por sua vez, tem a sua raiz numa crise antropológica. Vemos, com efeito, que o debate cultural está muito vivo e que tem que ver com o modo como compreendemos a família e a pessoa humana. É exactamente aqui que a Evangelização surge com toda a clareza como algo essencial e que se vê que desistir de evangelizar é desistir da pessoa. Deus nunca desiste de ninguém. A Igreja também não desiste. Eis alguns dos muitos aspectos da antropologia que mostram como depende do modo como se percebe a pessoa o que será a vida da sociedade.

A pessoa é um indivíduo. Cada pessoa é um ser único e irrepetível. Mas também é intrinsecamente um ser social. Para ser quem é na sua inteireza, cada pessoa pertence desde o primeiro instante a uma família, a uma nação, e muitas vezes a uma comunidade religiosa. O individualismo dos nossos tempos faz pensar que as pertenças são secundárias e que os vínculos com outras pessoas são escolhas ou obrigações e pesos, em vez de serem compreendidos, como eles são: algo essencial para a plena realização da pessoa. Quando o individualismo vinga, deixa de fazer sentido participar na vida social ou de se empenhar em ajudar os outros. A regra será a do safar-se. Mudando a percepção da pessoa como um ser social por natureza muda tudo no modo como a sociedade se compreende e se organiza.

A pessoa é uma unidade de corpo e alma. Três erros podem surgir. Pensar que a pessoa não é uma unidade mas a justaposição de um corpo e de uma alma, fazendo com que o corpo seja desprezado e tratado como se fosse uma coisa que se usa ou, pelo contrário, o aspecto mais forte que deve imperar. Um segundo erro é pensar que a pessoa é só matéria. Neste caso trata-se a pessoa como uma soma de reações químicas nas células e as dimensões espiritual e afectiva são reduzidas a uma questão física, e o instinto irracional torna-se o dominador da vida. Mas pode também existir a redução da pessoa a uma pura realidade espiritual, e, nesse caso o corpo ou é considerado como um castigo ou como uma espécie de peso que deve ser acalmado para que "a pessoa" possa estar em paz. Esta perspectiva espiritualista, paradoxalmente, é aquela que fará também desaparecer regras de uma moral sexual: o corpo deve fazer o que lhe apetece, porque se considera que ele não tem que ver com a pessoa! Estas questões são fundamentais para pensarmos em dimensões como a saúde, a alimentação, a sexualidade mas também a morte e a vida.

Inevitavelmente, se a pessoa é uma unidade de corpo e alma, a sua identidade não é puramente espiritual mas tem que ver com a unidade de corpo e alma. Ser homem ou mulher é algo que tem que ver com o seu corpo e com a sua alma. Há uma objectividade física que define a pessoa e orienta o seu comportamento. A existência dos dois sexos, a complementaridade dos dois sexos e a possibilidade de se juntarem e constituírem uma família é algo que tem que ver com o que é a pessoa e com o que seja a sociedade.

A pessoa humana tem em si uma natural sede de Deus e uma relação com o que a transcende. Sem esta busca do infinito a pessoa fica reduzida a uma coisa fechada neste mundo. É completamente diferente uma pessoa aberta ao infinito e ao eterno ou alguém que se julga fechado neste mundo. A secularização, que diz que a questão religiosa é uma questão sentimental e privada, tende a negar que esta dimensão da pessoa é algo de essencial e determinante para a pessoa e para a sociedade. Esta não é uma questão social ou política ou ideológica, mas antropológica. Uma política realista deve ter em conta está dimensão da pessoa.

A pessoa humana é capaz de dominar o mundo com a sua inteligência através da ciência e da tecnologia. Mas está sua capacidade não pode ser entendida como omnipotência. Aos limites naturais das suas capacidades devem juntar-se os limites éticos sem os quais a ciência deixa de ser um serviço para passar a ser um perigo. A igreja promoveu sempre a ciência ciente da responsabilidade que os homens receberam de Deus de conhecer cada vez melhor o mundo e de administrar a realidade para que tudo possa servir o homem no seu caminho para Deus. Se a pessoa é compreendida como independente dos outros de e Deus, a ciência e a técnica desligam-se da ética e tudo passa a ser possível desde que se consiga fazer.

 

A pessoa vive no tempo, mas tem uma relação real com o que está para lá do tempo. A morte e o nascimento levantam perguntas sobre o antes é o depois. É a maneira como se respondem a estas questões muda o modo de perceber a vida. Se o tempo é tudo é também uma fatalidade e o envelhecimento é sempre o caminho para o fim. Se o tempo é algo de passageiro então a vida não é uma tragédia, mas um drama onde cada um deve responder aos desafios da vida, mas tendo em vista não um fim mas uma plenitude. Uma sociedade sem relação com o eterno vive para consumir no presente.

A pessoa é capaz de dar valor às coisas e sobretudo de reconhecer o valor que a vida e as realidades que constituem a vida têm. Quando o mercado é tudo, o valor da vida humana passa a ser avaliado como uma coisa. O aborto e a eutanásia surgem como resultados de avaliações que nascem desta redução. A pessoa vale por aquilo que produz! Esta questão muda completamente a sociedade. Mas é claramente algo que tem que ver antes de mais nada com o modo como compreendemos a pessoa. É ou não um ser capaz de reconhecer o valor intrínseco das realidade para além de uma perspectiva de mercado.

Finalmente, podemos dizer que a pessoa é um ser que precisa de amar de e ser amado. Começámos por dizer que ninguém é um simples indivíduo, devemos dizer agora, com mais precisão que a pessoa é um ser familiar onde se aprende, se vive e se ensina o amor. Sem amor a pessoa não se personaliza e fica como que incompleta. A família é naturalmente o berço do amor. E onde há família que vive de um amor que não é simples sentimento mas algo que empenha a pessoa no dar a vida pelos outros e no acolhimento dos outros, há uma sociedade coesa e criativa.

Todas estas questões estão muito vivas nos debates de hoje em dia e não se pode, de certeza, abstrair desses problemas para se pensar os temas da justiça social e da economia. Quando as respostas às questões antropológicas não estão em sintonia com a natureza humana e, consequentemente, com o Criador, querer uma coesão social, um desenvolvimento, uma justiça é algo que parece impossível, porque carece de base.