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P. Duarte da Cunha
Fidelidade, algumas reflexões…

Que a fidelidade seja uma virtude parece óbvio. Ainda que para o ser verdadeiramente terá de ser fidelidade ao bem… fidelidade, no sentido de cumplicidade ao mal é tão mal como o mal a que se é supostamente fiel.

Ficando pela fidelidade ao bem, algumas coisas podem ser úteis e, nos tempos que correm, diria ser urgente recordar.

 

Ser fiel a alguém, também quer dizer ser fiel à amizade, ao compromisso, à aliança que existe entre mim e essa pessoa. Não há dúvida que isso tem algo que ver com o manter da relação. Não quebrar o laço, não trair, não abandonar aqueles a quem prometemos estar presentes e ser amigos, ou com quem nos comprometemos a fazer algo em conjunto.

Porém, ser fiel a uma relação não pode ser apenas uma coisa estática, não é só “manter”. Porque uma amizade não sobrevive se fica estagnada em alguns momentos bem vividos, ou nos sentimentos experimentados no passado. A amizade, para ser verdadeira, tem de crescer, precisa de se desenvolver para acompanhar a vida à medida que esta avança, acumula experiências ou enfrenta questões novas. A fidelidade numa amizade, por tudo isto, é trabalho, mais do que manter, ela implica um empenho concreto, para prosseguir na história o caminho dessa relação que, se está viva, não pode fica sempre na mesma.

Parece claro que para se ser fiel empenhadamente a uma amizade, à medida que a vida avança, é indispensável ter bem recordado o ponto de partida e o bem que se quis nesse momento, e, ao mesmo tempo, ter em mente onde se quer chegar. Ela não é estática, quer dizer avança, mas não está sempre a inventar um caminho. Há pontos firmes a que os amigos fiéis se agarram para não adulterar essa relação; mas, insisto, o fiel não fica parado.

Cada vida humana tem uma relação especial com Deus, e é chamada a ser fiel a essa relação, desde logo, reconhecendo em Deus o Criador, mas depois procurando e acolhendo a vocação que Deus lhe dá até assumir com ela um compromisso de avançar por esse caminho. A vocação é o chamamento a percorrer um caminho, ela vem de Deus e vai para Deus, mas cada um recebe a sua vocação como única e própria e tem a responsabilidade de avançar. Ser fiel à vocação, como a uma amizade, é, por isso, mais do que manter o ponto de partida, ou seja, enterrar o talento na terra para não se estragar! Ser fiel requer trabalho e, diria mesmo, para se ser fiel é preciso ser criativo para levar até Deus aquilo que recebemos de Deus, mas multiplicado.

Numa amizade humana algo de semelhante acontece. À memória que nos recorda o que nos ligou ao outro e da história já vivida em conjunto, devemos associar sempre quer a consciência de que se trata de uma relação presente quer o desejo de que se prolongue no futuro. Sem fidelidade, o passado, onde está o ponto de partida, e o futuro, ou seja, o ponto de chegada, não se unem.

A fidelidade de dois esposos, por quanto já fui dizendo, surge como o paradigma humano da fidelidade mais completa que possa existir entre humanos. Porque na sua origem está uma consciência de que algo, ou melhor, Alguém os uniu. Deus começa por despertar as vontades dos de um homem e de uma mulher para que, de modo consciente e sincero, se unam para toda a vida, mas depois chama-os à fidelidade, ou seja, a crescerem na relação e na intensidade da comunhão de vida.

Isto pode ser adaptado na devida medida para todas as amizades humanas. Contudo, isto não nos descansa completamente. Como pensar a fidelidade e, ao mesmo tempo, aceitar com humildade a incapacidade de estar sempre disponível para o outro? Como não desistir, apesar dos pecados que acabamos sempre por cometer ou suportar? Não penso só na traição, mas também na preguiça que leva a não estar empenhado na relação, ou na perda de entusiasmo que paralisa, ou, ainda, na redução do desejo que leva a não esperar nada?

Isto leva-me a concluir que só pode haver fidelidade neste mundo entre pessoas humanas conscientes quando na relação entre elas existe a disponibilidade para pedir e conceder o perdão! Claro que este requer o arrependimento por parte de quem fez mal, pois é isso que testemunha que este se reconhece responsável pelo que fez, mas, ao mesmo tempo, não se identifica com esse mal. O perdão acontece quando quem perdoa reconhece o desejo de fidelidade que está presente no arrependimento e afirma que mais do que uma coisa feita mal ou um bem não feito pelo amigo, esse amigo arrependido é um verdadeiro tesouro que não se quer perder. O perdão, contudo, não é só um deixar para trás algo, ele é o restabelecer de uma relação depois desta ter sido ferida. O nome completo de perdão na relação entre humanos e dos humanos com Deus é reconciliação.

 

Parece-me que ninguém pode, portanto, prometer fidelidade sem a vontade de se empenhar em fazer mais do que uma simples manutenção da amizade, mas também estou persuadido da importância fundamental da humildade, pois esta levará ao arrependimento quando algo de mal se fizer, e deixará a pessoa disponível, para perdoar o outro.

 

P. Duarte da Cunha