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Guilherme d'Oliveira Martins
Um Concílio atual

A inauguração do Concílio Ecuménico Vaticano II, no dia 11 de outubro de 1962, ocorreu há cinquenta anos. Foi um dos grandes acontecimentos do século XX. E não se pense que foi apenas um momento de renovação da Igreja Católica. Foi muito mais do que isso, uma vez que, depois dos anos mais trágicos que culminaram na grande guerra terminada em 1945, a reconstrução do que tinha sido dizimado pelo conflito abriu os novos horizontes da globalização. Terminou a lógica eurocêntrica e a Igreja assumiu as consequências do novo tempo no mundo contemporâneo. E João XXIII afirmou luminosamente nesse dia de outubro: «O Senhor disse: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça”. Esta palavra “primeiro” exprime, antes de mais, em que direção devem mover-se os nossos pensamentos e as nossas forças; não devemos esquecer, porém, as outras palavras desta exortação do Senhor, isto é, “e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt., 6,33). Na realidade, sempre existiram e existem ainda na Igreja os que embora procurem com todas as forças praticar a perfeição evangélica, não se esquecem de ser úteis à sociedade. De facto, do seu exemplo de vida, constantemente praticado, e das suas iniciativas de caridade, toma vigor e incremento o que há de mais alto e nobre na sociedade humana». Esta abertura ao mundo contemporâneo e aos sinais dos tempos merece sem dúvida ser ouvida e aprofundada. A liberdade religiosa, o apelo ao desenvolvimento humano, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, o pluralismo, a economia e a política ao serviço da humanidade, tudo isso leva à compreensão de um sentido mais exigente da transformação.

Recordemos algo que tem a ver com a mensagem de quem procurou lembrar que essa relação com o mundo é necessária e controversa, exigindo que o amor se sobreponha à incompreensão. Há pouco desaparecido, o Cardeal Carlo Maria Martini (1927-2012), afirmou, antes de nos deixar, que «a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança». Impõe-se que a Igreja seja ouvida pelo exemplo e pela abertura de horizontes, não como cedência, mas como magistério. E aqui exige-se audácia, uma vez que as pessoas, em especial as que vivem momentos de dúvida e da provação, precisam de uma palavra de compreensão e de esperança. O humanismo cristão precisa de garantir o equilíbrio entre os valores e a experiência, entre o respeito e o amor. «Os escândalos da pedofilia levam-nos a seguir um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. São temas importantes para todos e, às vezes, talvez, até importantes demais». Por outro lado, o Cardeal lembrava que «o Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos». Ora, «só quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão na renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute». Eis a chave deste alerta – que tem como subjacente o tocante e complexo episódio da samaritana. «Nem o clero nem o Direito eclesial (insiste o Cardeal Martini) podem substituir a interioridade do ser humano. As regras externas, as leis, os dogmas foram-nos dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos». No fundo, a noção de «mistério» tem a ver com essa capacidade de fazer viver a Graça e de a transformar em relação de amor e de respeito pela dignidade.

Há dias, celebrámos os 175 anos do nascimento de Madre Teresa de Saldanha (1837-1916), fundadora da Ordem das Dominicanas de Santa Catarina de Sena. A recordação vem a propósito, uma vez que a pintora dotada (discípula de Tomás de Anunciação, que António Quadros recordou no contexto artístico do seu tempo), descendente do Marquês de Pombal e do Duque de Saldanha, e parente do nosso primeiro Ministro da Instrução Pública, D. António da Costa de Sousa de Macedo, preferiu seguir uma vocação mística e foi pedagoga de grandes qualidades, na defesa da aprendizagem para todos (em especial das mulheres), que devemos recordar ainda hoje, permitindo-nos lembrar que a ideia de renovação que aqui lembrámos a propósito do Concílio Vaticano II e do Cardeal Carlo Maria Martini deve ser procurada na proximidade, na experiência concreta de cada um, no apelo e na vida de cada momento.