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Guilherme d'Oliveira Martins
A eminente dignidade da pessoa

Quando Mounier lançou o ambicioso projeto da revista «Esprit» em outubro de 1932, há 80 anos, o panorama da história europeia era de grande incerteza. Três episódios vão marcar decisivamente a evolução do pensamento de Mounier e do grupo de intelectuais que o rodeavam – a invasão da Etiópia pela Itália (1934), a Frente Popular francesa (1936) e o início da guerra de Espanha. Como afirma Guy Coq «a linha seguida por Mounier nestes anos cruciais de antes da guerra organiza-se em torno da viva consciência da escalada de um perigo mortal na Europa». «Sinto um sofrimento cada vez mais vivo por ver o nosso cristianismo solidarizar-se com o que designarei um pouco mais tarde de “desordem estabelecida” e de vontade de fazer rotura» (Mounier). Numa carta que escreve a Jean-Marie Domenach afirma: «o acontecimento será o nosso mestre interior». De facto, considera-se essencialmente testemunha do seu tempo. E este testemunho põe a tónica na relação entre o pensamento e a história, o que é mais importante do que uma apreciação puramente conjuntural das tomadas de posição em face das circunstâncias. Estamos perante o valor da imperfeição como um sinal da ação humana, o que é muito mais importante do que a consideração de modelos ou receitas fechados. E percebemos que correr riscos (o sujar as mãos) é fundamental para procurar a justiça animada pela verdade. Péguy ou Maritain falam dos polos profético e político – E. Mounier e P.L. Landsberg procuram fazer do compromisso (engagement) a ligação entre o respeito da «eminente dignidade» e a realização da justiça e da verdade.

Mounier concebe a pessoa humana como superação de si-mesma - «é o movimento do ser para o ser». O tema dos valores espirituais torna-se crucial perante o drama histórico. Landsberg e Mounier demarcam-se da ideia de Scheler, segundo a qual os valores são realidades absolutas. Não é possível subordinar a pessoa a um abstrato impessoal. Os valores não são ideias gerais ou desenraizadas - «são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade». Assim, há uma viragem metafísica com a chegada de Landsberg. Os dois pensadores recusam separar o corpo e o espírito – do mesmo modo que não aceitam encarar a realidade que os cerca sem o compromisso, que significa um pensamento de ação. «O compromisso pode revestir diversas formas: é humano, ético, político, espiritual, segundo a dimensão da ação que domina. Mas nenhuma das formas pode ser pensada de modo totalmente independente por referência às outras». E a verdade é que a coerência de Landsberg leva a que o filósofo sofra até às últimas consequências o seu compromisso, indo até ao sacrifício supremo da morte, no Campo de concentração de Oranienburg.

Jean Lacroix recorda o muito que Landsberg poderia ter dado à Europa do pós-guerra se tivesse sobrevivido. Mounier esperá-lo-á em vão. «A minha pessoa e em mim a presença e a unidade de uma vocação intemporal (…) chama a superar-me indefinidamente e opera, através da matéria que a refrata, uma unificação sempre imperfeita, sempre recomeçada, de elementos que em mim se agitam». Se o compromisso e o acontecimento se tornaram centrais nesta reflexão, devemos ainda acrescentar a capacidade de fazer frente aos acontecimentos, a ideia de afrontamento: «a pessoa expõe-se, exprime-se, faz face a, é rosto». E, de facto, a palavra grega próxima da noção de pessoa é «prosopon»: quem olha de frente, a máscara que identifica o ator no teatro grego. E a partir da ideia de «afrontamento», chegamos áquilo que Unamuno designava por «agonia», a luta pessoal, pela consideração dos valores espirituais. Afinal, «o amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital».