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Guilherme d'Oliveira Martins
«Pai-Nosso que Estais na Terra»

«Pai-Nosso que Estais na Terra» de José Tolentino Mendonça (Paulinas, 2011) é um livro de disponibilidade e de encontro. A Regra de S. Bento diz: «Abre o ouvido do teu coração». A arte da escuta exige que o diálogo seja efetivo. «Escutarmos e podermos ser escutados, até ao fundo e até ao fim, abre, no Espírito, horizontes mais amplos do que aqueles que sozinhos conseguiríamos avistar e relança-nos no caminho da esperança». A cada passo encontramos a palavra esperança, ligada ao «bom uso das crises». Num tempo de escassez de mestres, as experiências «são realmente grandes mestres, que têm alguma coisa a ensinar-nos». Mounier falou dos acontecimentos, esses nossos grandes mestres interiores, e Etty Hillesum implorou: «Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu. Mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá». Impõe-se, de facto, neste tempo de crise, uma atenção especial ao que nos rodeia, e dessa atenção tem de resultar o cuidado, que está na etimologia de caridade. Por que razão chegámos aqui? Porque não cuidámos de algumas coisas elementares, designadamente de que o progresso não é ilimitado e de que o desenvolvimento humano não existe, se não pusermos as pessoas no centro da economia e da sociedade. Daí que a austeridade não possa ser cega e surda relativamente à justiça. Não é um fim em si, tem de ser um instrumento de dignidade e de respeito mútuo. Tem de ser modéstia, sobriedade e de reciprocidade.

José Tolentino Mendonça recorda o episódio das tentações de Jesus: «Então o espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães”. Respondeu-lhe Jesus: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”». Depois segue: o diabo coloca primeiro Jesus sobre o pináculo do templo e em seguida num monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória. Mas o resultado é que, em face das respostas de Jesus, «o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no» (Mt., 4,1-11). O certo é que que estas tentações não aconteceram num só dia, representando a vivência das provações humanas. Mas quais as tentações que nos rodeiam e que aqui estão figuradas? O materialismo, o providencialismo e o absolutismo. O materialismo e a idolatria da matéria, numa vertigem de tudo ocupar com a satisfação imediata dos desejos e das explicações simplificadoras. O providencialismo, que confunde a relação com Deus com as interpretações fantasiosas e mágicas. «Não nos podemos atirar de pináculos para que Deus nos segure. Temos de integrar saudavelmente os nossos limites e fazer a nossa parte». E o absolutismo, que faz «do domínio da posse a fonte de felicidade» e que confunde a glória passageira com a experiência da magnitude da dignidade. Mas temos de lembrar uma quarta tentação, ilustrada pelo drama de T.S. Eliot «Crime na Catedral». Aí o que está em causa tem a ver com os desejos de fidelidade poderem ser sinais de orgulho e de vaidade… Será que não cometemos o pecado da soberba perante as virtudes que julgamos possuir? E é essa quarta tentação que pode minar a confiança, uma vez que é verosímil e que nos pode atingir. O cristianismo caracteriza-se por aproximar o exemplo do Filho de Deus das nossas próprias provações. Angelus Silesius diz: «Vai onde não possas / vê onde não vês: / escuta onde não ressoa / e assim estarás onde Deus fala». Este é o silêncio fundamental que exige que oiçamos o essencial por parte de quem «é o Jesus que nos interpela a cada passo e inesperadamente». Com fome, deste-me de comer, com sede deste-me de beber, nu, vestiste-me… Afinal, esse é o sinal de responsabilidade que se nos pede. E este ir onde se não possa, não é mais do que ser cada vez mais exigente e nunca acomodado, mantendo os olhos abertos.