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Pedro Vaz Patto
Arménia de novo esquecida

Talvez distraídos com outros dramas que se vivem noutras partes do mundo (primeiro na Ucrânia, depois também na Terra Santa), a opinião pública internacional e a maior parte dos responsáveis políticos, não têm prestado a devida atenção ao que se passa no enclave de Nagorno-Karabach (ou Artsakh, como é designado pelos arménios), um enclave de população arménia rodeado pelo território do Azerbaijão. Depois de sufocadas as suas pretensões de independência em relação ao governo deste país, o medo das perseguições levou a que, em menos de um mês, cerca de cem mil pessoas (numa população de cento e vinte mil) abandonasse esse território e se refugiasse na Arménia: uma verdadeira limpeza étnica, que faz recordar outras que a comunidade internacional veio a lamentar mais tarde depois de nada ter feito para as evitar. Este êxodo não surge do nada. Segue-se a um bloqueio (que durava há dez meses) do chamado “corredor de Lachin”, o trajeto que liga esse enclave à Arménia. Esse bloqueio isolou esse pequeno território e privou a sua população de alimentação, medicamentos e energia.

Parece incrível a indiferença generalizada diante desta tragédia. A indiferença dos responsáveis políticos ocidentais também será devida às vantagens de um bom relacionamento com o Azerbaijão, de quem dependem fornecimentos de gás depois do boicote ao gás proveniente da Rússia. A tradicional solidariedade da Rússia para com a Arménia tem-se esvanecido com os governos de Putin, agora focado sobretudo na guerra da Ucrânia.

Este drama e esta indiferença não podem deixar de ser relacionados com outro drama e outra indiferença também vividos pelo povo arménio há pouco mais de cem anos: o genocídio de 1915 (cerca de um milhão e meio de mortos, mais de dois terços da população da chamada Arménia Ocidental), o primeiro de vários genocídios ocorridos no século XX, como tal reconhecido hoje por vários Estados (e também pelo Vaticano), reconhecimento a que continua a opor-se o governo turco, herdeiro dos responsáveis por tal crime. Também nessa altura a comunidade internacional não reagiu, vindo depois (até hoje) a lamentar profundamente não o ter feito.

Estas duas tragédias que atingem o povo arménio não são factos isolados. Tal como o genocídio de 1915 culmina contínuas e variadas perseguições, assim sucede com o atual êxodo da população de Artsakh. Essas histórias de perseguições são narradas no livro do jornalista francês Frédéric Pons, L´Arrménie va-t-elle disparraìtre? – Un conflit oublié aux portes de l´Europe (Artége, Paris, 2023), um livro escrito pouco antes desse êxodo, mas que tornava este bem previsível à luz do que nele se narra sobre a situação desse enclave.

Temer a desaparição da Arménia, para o que aponta o título desse livro, por muito graves que tenham sido as perseguições sofridas pelo povo arménio ao longo da história, poderá parecer exagerado. Foi o que pensei antes de ler este livro. Mas fiquei com a impressão de que esse temor não será completamente infundado depois de ler nesse livro declarações públicas do atual presidente da Azerbaijão que, para além de denotarem intenso ódio para com o povo arménio, não escondem a vontade de conquista de, pelo menos, parte do território da Arménia e o uso da manipulação da história para o justificar (a manipulação da história como arma de guerra, a que assistimos também noutros contextos). Por detrás dessas declarações, juntamente com outras de governantes turcos, está o chamado panturquismo, a vontade de estender o domínio dos povos de cultura turca em todo o território que vai de Istambul até à região chinesa de Xinjang. Essas declarações, vindas de um dirigente de um país membro do Conselho da Europa (como era a Rússia antes da invasão da Ucrânia) e a indiferença com que têm sido recebidas, também não deixa de surpreender e chocar.

Salienta esse livro também um aspeto da maior relevância. A Arménia, a sua história e a sua cultura são um bastião do cristianismo no meio de povos de cultura muçulmana. A tradição faz remontar a sua evangelização aos apóstolos Bartolomeu e Matias. As conversões ao cristianismo deram-se sobretudo a partir do século III até que no ano 301 (antes da conversão do imperador romano Constantino) se deu, graças à ação de São Gregório, o Iluminador, a conversão do rei Tiridates III, o que faz da Arménia o primeiro Estado oficialmente cristão do mundo. Desde então (e apesar da separação de Roma em 451), a cultura da Arménia tem sido marcada pela indelével presença do cristianismo. Também a perseguição ao povo arménio se tem traduzido, ao longo dos séculos, pela destruição de sinais dessa marca, como igrejas e mosteiros.

Por acaso, tive ocasião de verificar essa relevância da identidade cristã da Arménia ao visitar a exposição “Tesouros do Museu da Terra Santa”, onde se alude à ligação do arménio mais conhecido e estimado em Portugal, Calouste Gulbenkian, à Terra Santa.

Convém sempre não confundir conflitos entre povos cuja identidade está profundamente ligada a uma religião, com uma guerra de religiões, como se estas fossem a raiz desses conflitos. Mas tal não significa que se ignore que por detrás das perseguições que atingem o povo arménio, ao longo da história e até hoje, está também uma perseguição à sua fé e à sua cultura cristãs. Também esse é um motivo para não esquecer a Arménia.

 

Pedro Vaz Patto
FOTO: Fundação Calouste Gulbenkian