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Pedro Vaz Patto
Liberdade de insultar?

Tem sido noticiada a intenção do governo dinamarquês de criminalizar a profanação (onde se inclui a queima) de livros tidos por sagrados pelas várias religiões, como o Corão e a Bíblia. A medida pretende limitar essa pática, mas também, e talvez sobretudo, as reações violentas da parte de extremistas islâmicos que contra a queima do Corão têm reagido. É criticada como se tratasse de uma cedência a essa violência que sacrifica o (tido por ainda mais sagrado) princípio da liberdade de expressão. O governo sueco parece não pretender, por ora, adotar medidas como essa, em nome dessa conceção absoluta da liberdade de expressão.

Na verdade, uma medida como essa não deveria ser encarada sobretudo como meio de evitar a violência e a perturbação da paz pública, mas antes e primacialmente como consequência do respeito dos sentimentos religiosos das pessoas, independentemente das reações, violentas ou não, que a profanação de símbolos ou objetos de veneração religiosa possa desencadear. O respeito pelos sentimentos religiosos deriva do respeito pela dignidade da pessoa e da sua liberdade religiosa, assim como da consciência do relevo existencial que tem a religião na sua vida.

O Código Penal português pune, no seu artigo 251.º, n.º 2, como «ultraje por motivo de crença religiosa», a «profanação de lugar ou objeto de culto ou de veneração religiosa». Mas exige, como elemento do crime, que tal se verifique «de modo adequado a perturbar a paz pública». Esta exigência pode ter como consequência uma injusta desigualdade de tratamento: os sentimentos religiosos dos membros de uma comunidade religiosa que não sejam propensos a reações violentas podem não ser protegida como o serão os de outra comunidade religiosa em que alguns dos seus membros (mesmo que sejam minoritários) tenham essa propensão. Parece que a paz pública é mais merecedora de proteção do que o respeito pelos sentimentos religiosos.

Há, então, quem considere um gesto de queima de um livro sagrado coberto pela proteção da liberdade de expressão. Pode invocar-se, a este respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal norte-americano que inclui nessa proteção a queima da bandeira nacional. O Código Penal português não adota essa conceção absoluta da liberdade de expressão e pune o ultraje de símbolos nacionais e regionais (artigo 332.º) e também o ultraje de símbolos estrangeiros (artigo 323.º).

A invocação do carácter absoluto da liberdade de expressão nestes âmbitos não se verifica noutros, a ponto de se poder concluir que há, neste campo, «dois pesos e duas medidas». Muitos países criminalizam o chamado “discurso de ódio”, que o Código Penal português define, no seu artigo 240.º, como «o incitamento ao ódio ou violência, assim como a injúria ou difamação, contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.». Na verdade, ninguém tem reclamado a liberdade de expressão para justificar um insulto racista, por exemplo. Esse insulto será punido, e não apenas objeto de reprovação moral. Mas há que reconhecer também que a criminalização do discurso de ódio tem servido de pretexto para tentar impedir a expressão de ideias contrárias à cultura hoje dominante, como as relativas à prática homossexual.  Apesar de absolvida num primeiro julgamento, ainda não o foi em termos definitivos uma antiga ministra finlandesa que citou passagens bíblicas que censuram tal prática.

Também pode considerar-se uma injustificada limitação da liberdade de expressão a proibição, que se verifica em vários países, de qualquer manifestação de oposição ao aborto, mesmo que na perspetiva do apoio a alternativas à sua prática, em zonas próximas dos locais onde ele se pratica. No Reino Unido, chegou a pretender-se a proibição de orações em silêncio nesses locais (pretensão de que, só recentemente, o governo se demarcou).

Mas onde poderemos traçar uma fronteira que concilie a liberdade de expressão, alicerce de uma sociedade livre e democrática, e o respeito da dignidade das pessoas e comunidades, que envolve também o respeito da liberdade religiosa? Há que distinguir a livre discussão de ideias (sobre a religião, sobre o cristianismo, sobre o Islão, sobre a prática homossexual) do que é ofensivo para com as pessoas, e também para com os seus sentimentos religiosos. Às ideias (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Ninguém deve recear esse debate, sobretudo quem está seguro de que, como afirma a declaração do Vaticano II sobre liberdade religiosa, «a verdade se impõe pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte». Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto. Um insulto pode ferir tanto ou mais do que uma agressão física. E dessa forma se gera o ódio e se facilita, mais ou menos diretamente, a violência. Não é assim que se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática.

Vem a propósito referir o que se afirma no “manifesto da comunicação não hostil” do projeto italiano “Parole O-Stili” de “sensibilização social conta a violência das palavras” (ver www.paroleostili.it): «as ideias podem discutir-se, as pessoas devem ser respeitadas»; «os insultos não são argumentos». Há quem alegue que a punição do “discurso de ódio” e, em geral, da difamação e da injúria, se justificam pela proteção da pessoa, mas assim não será, num Estado aconfessional, no que se refere à proteção da religião ou à ofensas à religião. Mas, se tivermos bem presente o que o relevo existencial da religião na vida da pessoa, facilmente compreenderemos como uma ofensa aos seus sentimentos religiosos (que se distingue da crítica a uma qualquer religião) pode ferir tanto ou mais do que uma ofensa pessoal. Também neste aspeto, está em causa a dignidade da pessoa.

À luz destes princípios, parece evidente que a queima pública de um livro sagrado de uma qualquer religião não se situa no plano do debate das ideias; é, pura e simplesmente, uma provocação e um insulto.

 

Pedro Vaz Patto