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Pedro Vaz Patto
Tomar o lugar de Deus

A propósito da exortação apostólica Laudate Deum, parece-me de salientar o que do seu conteúdo representa o contributo específico do magistério doutrinal da Igreja, aquilo que responsáveis e agentes políticos não dirão. Tal contributo está contido no que nela se afirma sobre as motivações espirituais do cuidado da “casa comum”. É significativa, a este respeito, a afirmação com que termina esta exortação apostólica: «Laudate Deum (Louvai a Deus) é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo». Expressão desta postura é aquilo a que o Papa Francisco designa como “paradigma tecnocrático”, isto é, a ideia de que não há limites para a utilização da técnica ao serviço da ambição do ser humano: «Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades» (LD, n.º 22). A esta mentalidade, há que substituir outra, que vê na criação uma dádiva e um sinal da bondade e beleza de Deus («Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa» - Gen 1. 31).

Estas considerações servem para motivar a proteção do ambiente físico, mas não só. São pertinentes também no âmbito daquilo que se vem designando como “ecologia humana”, a ecologia relativa aos âmbitos da vida, da sexualidade e da família. Também neste âmbito se evidencia a pretensão do ser humano se substituir a Deus, negando e destruindo o desígnio da Criação na sua beleza e harmonia. Expressão clara dessa postura é a de, à luz dos pressupostos da ideologia do género, pretender modificar o sexo que se considera “atribuído à nascença” em nome da prevalência do género autopercecionado, recorrendo para tal a tratamentos com hormonas do sexo oposto, bloqueadores da evolução pubertária e cirurgias de reatribuição do sexo.

Vem a propósito recordar o projeto atualmente em discussão na Assembleia da República relativo à implementação nas escolas do chamado “direito à autodeterminação da identidade e expressão de género” (consagrado na Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto). Essa implementação vai sempre no sentido da promoção da “transição social da identidade e expressão de género” (desde logo através da utilização obrigatória dos pronomes correspondentes ao género autopercecionado), transição que (mesmo que a lei fixe idades mínimas para tal), há de levar à opção no futuro mais ou menos próximo da pretensa “mudança de sexo” nos planos fisiológico e anatómico.

Um documento recente da associação dos médicos católicos norte-americanos (https://www.cathmed.org/resources/the-ideology-of-gender-harms-children) analisa esses procedimentos relativos à pretensa “mudança de sexo” à luz da doutrina católica e da ética médica, salientando as suas consequências nefastas. Estas compreendem-se precisamente porque está em causa a rutura de um equilíbrio natural e “ecológico”.

Nesse documento salientam-se aspetos da doutrina católica que esses procedimentos contrariam: que os seres humanos são criados por Deus homem e mulher; que a complementaridade dos dois sexos e a sua união como origem da vida fazem parte do desígnio de Deus; que o corpo é uma dimensão intrínseca da pessoa humana; que rejeitar o corpo é rejeitar um dom de Deus e uma forma de rebelião contra a Criação; que o corpo deve, por isso, ser respeitado e cuidado; que esse respeito deve estender-se à diferenciação sexual e sua finalidade; que ninguém tem direitos ilimitados sobre o corpo.

Salienta também esse documento princípios da ética médica que esses procedimentos relativos à pretensa “mudança de sexo” também contrariam: não respeitam o princípio da não maleficência; traduzem-se numa mutilação e não num verdadeiro tratamento, pois estamos perante órgãos saudáveis e funcionais que não causam danos e não ameaçam todo o organismo; não podem ser ignorados e ocultados as consequências irreversíveis, os riscos e os efeitos colaterais em causa (que levaram a um recuo do recurso a esse procedimentos em países como o Reino Unido, a Suécia, a Dinamarca, a Finlândia e a França). A perturbação da identidade de género em crianças e adolescentes deverá ser enfrentada a partir de um amor incondicional para com elas e seus pais no respeito da verdade da pessoa humana como unidade de corpo e espírito e com recurso à psicoterapia.

Todos estes aspetos não estão a ser devidamente considerados pelos nossos deputados, que se preparam para aprovar (numa indiferença quase geral) o referido projeto relativo à implementação nas escolas do chamado “direito à autodeterminação da identidade e expressão de género”. Trata-se de mais um passo no sentido da penetração da ideologia do género no sistema de ensino, que, além do mais, contraria os princípios consignados no artigo 43.º, n.º 2, da Constituição (sobre a neutralidade ideológica desse sistema) e o artigo 26.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (sobre a prioridade do direito dos pais quanto à educação dos seus filhos).

 

Pedro Vaz Patto