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Guilherme d'Oliveira Martins
Humanidade para a paz

Já se fala em pós-verdade, como se fosse legítimo adaptar a realidade às nossas conveniências. As redes sociais reconstroem a realidade, misturando verdade e ilusão. Há episódios miríficos e assustadores contados e repetidos nas redes sociais sem a mínima prova. E, em circuito fechado, constroem-se mistificações, transformando a racionalidade em irracionalidade. Mesmo o debate sobre Inteligência Artificial tornou-se um misto de ficção e realidade – havendo dificuldade em distinguir o conhecimento da imaginação. Mas, como encontrar a verdade? Como garantir que possamos compreender a importância de podermos ter robôs como instrumentos capazes de nos tornarmos mais humanos? De facto, há perigos para os quais temos de nos prevenir. Não podemos permitir que se comprometa o pensamento e a inteligência. Ao vazio de valores éticos temos de contrapor maior atenção à dignidade das pessoas e do trabalho humano, à distinção entre fins e meios, ao reforço dos instrumentos mediadores da democracia e de respeito dos direitos humanos. Não podemos tornar-nos uma sociedade sonâmbula incapaz de travar perigos e ameaças incontroláveis.

Timothy Radcliffe em “A Arte de Viver em Deus” (Paulinas, 2021) diz-nos que o que arruína a fé em Deus não é o ateísmo ou o secularismo enquanto tal, mas a “globalização da superficialidade”. A redução do papel da criatividade e da imaginação à expressão mais simples e indiferente, perante a repetição de lugares-comuns e a tentação do imediatismo e do trivial, conduz-nos, em lugar da valorização da atenção e da aprendizagem, à mentalidade unívoca e àquilo que Flannery O’Connor referiu como a tentação de nos contentarmos em idealizar galinhas sem asas. “É preciso desfazer preconceitos acerca daquilo em que os cristãos acreditam, se quisermos envolver-nos com os nossos contemporâneos. Não, perdoar não é esquecer; não, os ensinamentos da Igreja não são ideologia ou endoutrinamento. Libertem a mente e o coração. Não, o cristianismo não rejeita o corpo, mas aprecia a sua santidade. (…) Como nos furtaremos à sedução da violência ou ao fascínio do dinheiro… e às garras da imaginação tecnocrática?”   E, no entanto, receamos o outro, o estranho e o diferente. Preferimos fechar-nos no egoísmo e no comodismo. Sofremos a destruição da natureza e o aquecimento global, a pobreza continua, mas recusamos ouvir o Papa Francisco quando nos pede que preparemos uma sociedade mais humana, atenta ao cuidar do futuro e ao recusar a cegueira do consumismo sem limites e o desperdício desenfreado.

Há dias, lembrámos o encontro de Jesus com Mateus, o publicano. Os fariseus admiraram-se desse encontro, como outros reprovaram a conversa com a samaritana. Ainda Radcliffe diz-nos: “O caminho para uma verdadeira abertura passa, amiúde, pelo que está ordenado e sujeito a disciplina. Assim como a poesia é um exercício altamente rigoroso que abre um buraco através das constrições de uma imaginação banal, assim também a liberdade e a saída do fechamento se obtêm mediante a amizade exigente e incondicional de Jesus”. Mais do que uma marca redutora, a abertura propõe um caminho para lá das polarizações fragmentadoras. Dedicamos tempo demais à vozearia. Se a informação e a procura da verdade dos acontecimentos são importantes, muitas vezes vemos a comunicação social menos preocupada com o rigor do que com a conquista de audiências. Contudo, a qualidade virá sempre à tona. Precisamos de compreender que a manipulação retratada por George Orwell e que as mais diversas formas de censura estão mais próximas de nós do que supomos. É impressionante como a metáfora da “novilíngua” e seus complementos é realizada nos dias que correm como se não houvesse memória e se tivessem esquecido, de súbito, os alertas orwellianos. Não nos cabe refazer o mundo à luz do nosso bem-estar e da nossa boa consciência ou de uma regra fechada. O “acontecimento nosso mestre interior”, a necessidade de assumirmos o compromisso da humanidade e da importância do dom, como realização da dignidade, eis o que temos de assumir com todas as consequências. A imaginação cristã de cada um baseia-se na sua própria experiência, na aceitação da imperfeição, e no dever de sermos melhores amanhã do que hoje. “Tudo o que qualquer um de nós consegue fazer é acender o seu pequeno farol e esperar que leve outros a acender o deles”. Como afirmou o Cardeal Newman, não devemos recear que a vida tenha um fim, mas temer que nunca tenha um começo. E esse começo pressupõe a capacidade de compreender, de estar atento, de conhecer e de cuidar. Não esquecemos o “Ver, Julgar e Agir”. Como recordou D. Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, homenageando o Cardeal J. Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica: importa, no fundo, para ter presente a Boa Nova de Jesus Cristo: ver da maneira mais objetiva possível, julgar os acontecimentos à luz do Evangelho, e agir em consequência, isto é, de harmonia com tal visão das coisas. Ora, num tempo de guerra como aquele em que vivemos, bem como de destruição do meio ambiente e da biodiversidade, e em que as desigualdades se agravam, importa pôr a tónica na partilha de responsabilidades e na subsidiariedade. O desenvolvimento humano e uma cultura de paz têm de entrar na ordem do dia!   

 

Guilherme d’Oliveira Martins