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Pedro Vaz Patto
As forças do Mal não prevalecerão

Foi com profunda indignação e tristeza que li o relatório sobre abusos sexuais praticados em ambientes da Igreja nos últimos setenta anos. Devo dizer também com alguma surpresa, pois até há pouco acreditava ilusoriamente que o fenómeno em Portugal não tinha a dimensão que teve noutros países. É natural que outras pessoas pensassem também isso, pois uma grande parte dos testemunhos agora divulgados são de pessoas que nunca haviam relatado a ninguém os abusos de que foram vítimas, nem de algum modo haviam apresentado queixa deles.

Estou habituado, na minha profissão de juiz, a ouvir relatos igualmente chocantes, todos eles praticados noutros ambientes, os mais variados. Mesmo assim, não me tinha apercebido da gravidade de traumas que perduram tantas décadas depois. E não estou habituado a ouvir tão graves e repugnantes sacrilégios relativos aos sacramentos da ordem e da confissão, preciosos dons de Deus para a humanidade.

Por mais que me esforce, ainda não consegui encontrar uma explicação humanamente compreensível para este fenómeno.

Sei bem que não se trata de uma especificidade dos sacerdotes e da Igreja Católica. Além do mais porque, como disse, lido com este crime regularmente e vejo-o praticado por homens de muitas profissões e graus de instrução. Há estudos que estimam as vítimas em 18% de todas as crianças e adolescentes do sexo feminino e 9% as do sexo masculino. Mas é claro que não seria de esperar (dizem-no católicos e não católicos) que ele fosse praticado com tanta frequência por filhos da Igreja. Na verdade, estes abusos representam talvez o que possa conceber-se de mais contrário à mensagem de Jesus Cristo (que considera feito a Si o que fizerem ao «mais pequeno dos meus irmãos»). Basta recordar como uma das novidades da influência cultural cristã na Antiguidade foi, precisamente, a valorização das crianças, em sociedades onde eram aceites, até por destacados pensadores, o infanticídio, o abandono de recém-nascidos e o abuso sexual de crianças e adolescentes (práticas que deixaram de ser aceites devido a essa influência). Estes crimes representam também a mais flagrante violação da ética sexual cristã e católica (que recusa a instrumentalização da pessoa reduzida a objeto de satisfação de impulsos sexuais) e é por demais absurdo culpar essa ética (como há quem o faça) pela ocorrência desses abusos no âmbito da Igreja.

Não é certamente o celibato sacerdotal que está na origem dos crimes de abusos sexual de crianças, que são praticados quase sempre praticados por pessoas não celibatárias e também por ministros casados de outras denominações cristãs. É uma evidência que um homem com tendências pedófilas não as afasta com o casamento ou a vida marital; pelo contrário, surgirá então o perigo de praticar estes crimes no seio da família.

É verdade que o abuso sexual de crianças e adolescentes, dentro ou fora da Igreja, supõe sempre uma assimetria entre abusador e vítima (pela idade, posição social, etc.) e traduz sempre uma forma extrema de abuso de poder. Por isso, há quem veja na estrutura hierárquica da Igreja e no clericalismo a raiz deste problema. Mas também não consigo encontrar aqui uma explicação humanamente razoável para ele. É verdade que, na Igreja, como noutros âmbitos da sociedade, a autoridade pode degenerar em autoritarismo, mas sem que normalmente esse abuso chegue ao extremo que representa o abuso sexual de crianças e adolescentes. Ou seja, uma qualquer autoridade ou a tendência para dela abusar não explicam, por si só, a ocorrência deste crime.

A propósito da publicação deste relatório, vem-me à mente a promessa de Jesus relativa à sua Igreja: «As forças do Mal não prevalecerão sobre ela» (Mt 16, 18-20). Jesus não disse que essas forças do Mal não atacarão a Igreja, disse que sobre ela «não prevalecerão». E, como disse a propósito o Papa Bento XVI quando esteve em Portugal, essas forças do Mal não atacam a Igreja apenas desde fora, também estão no seu interior.

É porque essa promessa de Jesus é verdadeira que a Igreja, ao longo de dois mil anos, sobreviveu a muitas crises tão ou mais graves do que esta, a muitas infidelidades dos seus filhos tão ou mais graves do que estas, o que certamente não sucederia com outra qualquer instituição humana. Mas não se trata apenas de sobreviver. Podemos dizer que, nessa história, às trevas sempre sucedeu a Luz, ao pecado sempre sucedeu a santidade (São Francisco de Assis e muitos outros na Idade Média, Santa Teresa de Ávila e muitos outros depois do Renascimento), à paixão e morte sempre sucedeu a Páscoa da Ressurreição.

Penso que será também assim nesta hora da História da Igreja em Portugal e no Mundo. Há que ter a coragem de encarar a realidade como ela é, porque «a verdade liberta». Há que ter a humildade de reconhecer erros graves e infidelidades à mensagem que queremos difundir. Há que fazer tudo para minorar o sofrimento das vítimas, também elas filhos e filhas da Igreja, mesmo os e as que dela se afastaram. A Igreja deve fazer seu o sofrimento destes seus filhos e filhas. Esse seu exemplo pode servir (como já muitos reconheceram) para outras vítimas deste crime, de que muito menos se fala. Na esperança de uma Ressurreição, para essas vítimas e para todos nós.

 

Pedro Vaz Patto