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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
A gata borralheira, em versão eclesial

Era uma vez uma menina muito bonita, mas muito pobrezinha, de quem a madrasta não gostava nada e, por isso, chamava-a gata borralheira.  Quando houve no palácio real um baile, para que o príncipe herdeiro escolhesse a futura rainha, só as filhas do seu pai e madrasta é que foram convidadas. Contudo, as lágrimas da gata borralheira foram ouvidas pela sua fada madrinha, que logrou que se apresentasse no baile, sendo a mais bonita das debutantes. Deslumbrado com a sua beleza, o príncipe apaixonou-se por ela, com quem veio a casar, depois de a ter identificado, graças a um sapato que, na sua precipitada saída do baile, lá tinha deixado e que só no seu pé cabia.

Esta história, que todos ouvimos na nossa infância, aconteceu há uns anos atrás. A borralheira chama-se Meghan Markle, e é agora duquesa de Sussex, graças ao seu casamento com Harry, filho segundo do herdeiro do trono britânico, o príncipe de Gales.

Infelizmente, esta história não conclui como aquelas em que se diz que casaram e foram muito felizes. É verdade que casaram mas, em vez de serem muito felizes, não só foram infelizes como tiveram a infelicidade de dar uma entrevista a Oprah Winfrey, uma famosa bilionária norte-americana.

Há já algum tempo que se tinha percebido que havia algo de podre, não no reino da Dinamarca – embora o avô paterno de Harry, o Príncipe Filipe, tenha nascido príncipe da Grécia e da Dinamarca – mas da Grã-Bretanha. Os duques de Sussex, insatisfeitos com o cumprimento das missões protocolares que lhes competiam, como membros da família real britânica, decidiram deixar o Reino Unido, para se instalarem no novo mundo. Não obstante as facilidades dadas para esta mudança de vida, decidiram dar uma polémica entrevista.

Não fica bem a quem pertence à família real inglesa fazer, numa entrevista televisiva, comentários sobre outros membros da realeza britânica. Também não é aceitável que a ex-gata borralheira, agora duquesa de Sussex, recorra aos meios de comunicação social para insinuar que foi vítima de acusações racistas, por parte de membros da família a que passou a pertencer pelo seu casamento. Afinal de contas é a família que a acolheu no seu seio e a que deve estar grata, zelando pelo seu bom nome e fama. São Mateus diz que José, ante a inexplicável gravidez de Maria, foi “justo e não a querendo difamar, resolveu repudiá-la secretamente” (Mt 1, 19). Às vezes, o silêncio é uma exigência não apenas da caridade, mas também da justiça.

De algum modo, todos os cristãos somos como a gata borralheira porque, nascidos na condição a que nos condenou o pecado original, ascendemos, pela graça do Baptismo, à condição principesca de filhos de Deus. Na realidade, a distância que vai de uma pessoa não baptizada a um fiel cristão é muito maior do que a que percorreu Meghan Markle quando se transformou, pelo seu casamento, em duquesa de Sussex: é muito mais importante ser filho de Deus do que cônjuge do neto da Rainha da Inglaterra. Se a actual duquesa deveria estar agradecida pelo conto de fadas que lhe foi dado viver, muito mais devemos estar nós, cristãos, por sermos filhos de Deus, na sua Igreja.

Nunca seremos dignos da imensa honra que nos foi misericordiosamente concedida pelo nosso Baptismo, mas, pelo menos, saibamos ser agradecidos, sem nunca ter a deselegância de criticar publicamente a Igreja, que é a família real a que, graças a Deus, pertencemos como filhos e co-herdeiros em Cristo. Com certeza que na Igreja há pecadores, também entre os seus pastores, mas há também muitos santos e seria uma injustiça que, dos lábios de um filho de Deus, se ouvisse uma crítica contra outro membro da sua família. Que a gratidão por esta tão excelsa honra nos leve a ser justos e, sempre que falemos dos membros da nossa família eclesial, tenhamos a caridade que queremos que os nossos irmãos na fé tenham ao falar de nós. 

O reconhecimento da graça da filiação divina, que nos foi concedida no nosso Baptismo, deve-nos levar a uma atitude constante de acção de graças a Deus e de serviço aos nossos irmãos. A realeza de Maria e José manifestou-se, precisamente, no seu contínuo louvor ao Senhor e no seu alegre serviço à família real dos filhos de Deus.