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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
O dorminhoco

Concluído, no passado domingo, o tempo do Natal, com a celebração da festa do baptismo do Senhor, houve que proceder à desmontagem do presépio. Em muitos lares cristãos foi decerto com alguma nostalgia que se embalaram de novo, até ao próximo Advento, as figurinhas que nos ajudaram a preparar e a celebrar o nascimento de Jesus. Há representações que se reduzem, muito singelamente, ao mistério central – Jesus, Maria e José – mas também os há, como os napolitanos, com uma enorme profusão de imagens, algumas até de duvidosa legitimidade histórica, mas com arreigada presença na nossa tradição natalícia. É o caso do dorminhoco, que aparece em muitos dos presépios mais artísticos de Machado de Castro e da sua escola, mas também em nascimentos de carácter popular.

Em nome da verdade histórica, diga-se de passagem que não consta, nem entre os pastores, nem também entre os magos e a sua comitiva oriental, a existência de nenhum dorminhoco. Mas, mesmo que em nenhuma parte se diga que alguém adormeceu diante do Deus Menino, ou tenha permanecido indiferente ao apelo que é, para todos os homens de boa vontade, o nascimento de Deus encarnado, é certo que também agora, mais de dois mil anos volvidos sobre o nascimento de Cristo, não faltam dorminhocos à volta do mistério da fé, ou seja, pessoas que, não obstante a ruidosa alegria da nossa sempre tão festiva celebração do Natal, permanecem indiferentes.

Talvez se nos ocorra pensar que os piores inimigos da fé cristã são aqueles que, pelas suas palavras ou acções, manifestam a sua aversão a Deus e à Igreja. É certo que, também nestes tempos modernos, não faltam as perseguições, nem os mártires cristãos, mortos por ódio à fé. Mesmo nas sociedades de antiga tradição cristã, permanecer fiel a Cristo, na sua Igreja, não é possível sem algumas contradições. Mas, piores do que esses declarados inimigos da fé, são os que manifestam uma total indiferença em relação à mensagem cristã. Alguém que odeia é também capaz de amar, como Saulo de Tarso, o perseguidor dos primeiros cristãos que interveio no martírio de Santo Estêvão e que, depois do seu providencial encontro com Cristo na estrada de Damasco, se converteu em São Paulo, um dos mais apaixonados e apostólicos discípulos do Mestre. Todavia, alguém que, pelo contrário, vive na letargia de uma mortal indiferença, talvez nunca odeie, mas também nunca logrará amar, nem sequer o Amor que Deus é.

Impressiona o desconsolo de Jesus ante os indiferentes: “A quem hei-de Eu comparar esta geração? É semelhante às crianças que estão sentadas na praça e que gritam aos seus companheiros: Tocámos flauta e não bailastes, entoámos lamentações e não chorastes” (Mt 16-17). Ele, que convivia com os pecadores públicos, até ao ponto de escandalizar os seus discípulos, sente-se como que incapaz de acordar, para a vida sobrenatural, os que padecem o triste sono do desencanto, da indiferença, da tibieza. Não estranha, por isso, a inusitada dureza da Sagrada Escritura, quando recrimina os indiferentes: “Conheço as tuas obras, que não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas porque és morno e não és nem frio nem quente, vou vomitar-te da minha boca” (Ap 3, 15-16).

 A este propósito, as palavras, para este novo ano, do Senhor Patriarca, a propósito d’ “A agenda do Papa Francisco para 2016”, não poderiam ser mais oportunas: “entramos em 2016 (…) mas o pior seria deixarmos que algum atordoamento redundasse em indiferença”, pois, nesse caso, poderíamos “ficar inertes no espírito e inactivos na prática”.

Um objectivo para este novo ano de graça: viver acordado para o grande mistério do amor de Deus e despertar, sobretudo com a vivência de uma autêntica caridade, quantos dorminhocos na nossa família, entre os nossos amigos e colegas, ainda não experimentaram nas suas vidas a maravilhosa realidade da misericórdia de Deus!