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Pedro Vaz Patto
Um Pai criador

Grande parte das notícias relativas à encíclica do Papa Francisco Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum, acentuavam a adesão da Igreja Católica às principais causas ambientalistas, incluindo a da luta contra o aquecimento global. E acentuavam a oportunidade política da sua publicação a poucos meses da cimeira de Paris, onde esta questão vai ser debatida. Essas causas encontram um aliado, o Papa Francisco, cuja forte autoridade moral é reconhecida por muitos.

Podemos encarar este facto como exemplo de uma Igreja que, na linha da Gaudim et Spes, faz suas as angústias e preocupações da humanidade de hoje e está atenta aos sinais dos tempos.

Mas esta forma de apresentação da encíclica (a Igreja que adere às causas ambientalistas e a oportunidade política da sua publicação neste momento) pode ser muito redutora.

Por um lado, porque há outros aspetos da sua dimensão política que não podem ser ignorados.

Assim, a ligação entre as causas da proteção do ambiente e as causas do combate à pobreza e da justiça social. «Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma só e complexa crise sócio-ambiental» (n. 139) - afirma o Papa. Há uma dívida ecológica dos países ricos para com os países pobres (n. 51); os primeiros têm maiores responsabilidades na degradação do estado do planeta, por dever de justiça devem assumir encargos maiores nos custos que implica o combate a essa degradação.

O Papa não se limita a juntar-se ao coro de vozes que hoje já se ouvem com insistência. Também vai contra a corrente do “politicamente correto”. Não adere acriticamente à agenda da O.N.U.. Assim é quando rejeita a tese de que a proteção do ambiente impõe a redução da população dos países mais pobres e critica o condicionamento de ajudas a estes países à aceitação de programas de “saúde reprodutiva” (um eufemismo onde se inclui o recurso ao aborto). Tal como quando denuncia a incompatibilidade entre a defesa da natureza e a justificação do aborto. 

Mas o capítulo da encíclica que me parece de salientar acima de todos, porque ajuda a compreender a motivação mais profunda do cuidado para com o ambiente, e porque é nele que reside o contributo mais caraterístico e insubstituível da Igreja para o debate e a ação sobre o cuidado do ambiente, é o relativo ao “Evangelho da Criação”.

A teologia da criação leva-nos a respeitar esta como precioso dom de Deus. A criação não é Deus (como seria próprio de uma visão panteísta, do pensamento mítico pré-cristão, ou de correntes pós-cristãs de tendência New Age), não é, pois, intocável ou perfeita em si mesma. O ser humano é criatura, não se cria a si próprio. É uma criatura dotada de sublime dignidade, mas não deve substituir-se ao Criador, deve, antes, com Ele colaborar, completando a sua obra, sem a destruir. Estas ideias são desenvolvidas com profundidade e beleza em vários pontos da encíclica.   

«(…) São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade» (n. 12)

«A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses.» (n. 75).

E esta fé há de traduzir-se na prática de uma “ecologia da vida quotidiana”, que depende de virtudes como a gratidão, a gratuidade, a sobriedade e a humildade. E - diz a encíclica -, não «é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é mal.» (n. 224).

A encíclica Laudato Si é mais do que a “encíclica verde”, ou da “encíclica conta o aquecimento global”.