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Pedro Vaz Patto
Não somos demais

Desta vez, parece que foram mais as manifestações de júbilo do que as de temor que acompanharam a passagem de mais uma etapa do crescimento da população mundial. Foi sobretudo com declarações de boas vindas que se acolheu a criança que se convencionou identificar com o número de oito mil milhões de entre os habitantes deste nosso planeta. Foi até com alguma surpresa que se ouviu tal manifestação de júbilo da parte da diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), organismo que tem pugnado pela limitação drástica do crescimento populacional sem excluir o recurso ao aborto. Mas também é verdade que tal declaração não deixou de ser alvo de críticas.

São de recordar os tons catastrofistas que desde há cerca de cinquenta anos apontavam o crescimento demográfico como causa da pobreza e até ameaça para a sobrevivência do planeta, na linha das teses de Thomas Malthus, que há mais de cem anos comparava a progressão aritmética do crescimento dos recursos com a progressão geométrica do crescimento da população.

Esses prognósticos alarmistas não se verificaram e o crescimento exponencial da população nos últimos cinquenta anos não impediu a extraordinária redução da pobreza absoluta. Verificou-se, por outro lado, que o desenvolvimento pode contribuir para que os nascimentos sejam fruto de decisões conscientes e responsáveis sem limitar a liberdade dos casais (ou seja, não é a limitação dos nascimentos que, por si só, causa o desenvolvimento, mas é este que contribui para tal limitação). Se, porém, nessas decisões não entra a generosidade (uma generosidade consciente e responsável) caímos na queda da natalidade que não assegura a renovação das gerações e no envelhecimento das sociedades que afeta hoje os países mais desenvolvidos, com as graves consequências que daí decorrem: um fenómeno não previsto há cinquenta anos, mas que não pode ser hoje ignorado.

Contra as teses inspiradas nas ideias de Malthus, a experiência revela-nos como os recursos não são estáticos e que a inteligência e criatividade humanas contribuem para a sua multiplicação e para o seu melhor aproveitamento.

Também se alerta agora para o impacto do crescimento da população na chamada “pegada ecológica”. Mas, a este propósito, também houve quem salientasse agora como não são os países pobres com maiores taxas de natalidade os que causam maior poluição. O equilíbrio ecológico depende, não tanto do número de pessoas, mas dos modos de produção e dos estilos de vida. É verdadeira a frase de Ghandi citado no discurso que António Guterres proferiu nesta ocasião: «O mundo tem o suficiente para as necessidades de todos – mas não para a ganância de todos».

Nesse discurso, Guterres congratulou-se com o nascimento desta criança número oito bilhões, que considerou fruto «dos avanços científicos e das melhorias da saúde pública e da alimentação». Mas também salientou, corretamente, como tais avanços não têm beneficiado todos por igual, que a pobreza subsiste e que têm crescido as desigualdades.  Dar as boas vindas a esta criança, e a outras que continuam a nascer, há de significar que lhes vai ser proporcionada uma vida digna. Eu acrescento que não pode lamentar-se, como por vezes sucede, o nascimento de crianças em contextos de pobreza (como se elas não fossem bem-vindas e fossem demais), ignorando que fundamental é, antes, combater a pobreza. Não se combate a pobreza evitando que os pobres nasçam. Até porque as culturas de muitos povos atingidos pela pobreza são das que mais valorizam a vida. 

Por tudo isto, devemos reafirmar a este propósito que a maior riqueza de uma nação e da humanidade são as pessoas. Afirma a constituição do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (n. 24), que o ser humano é a «a única criatura na Terra a ser querida por Deus por si mesma» E cada pessoa é, na expressão várias vezes usada por São João Paulo II, “única e irrepetível”. Afirma, assim, a exortação apostólica Familiaris Consortio (n. 30) que «a Igreja crê firmemente que a vida humana, mesmo que débil e com sofrimento, é sempre um esplêndido dom do Deus de bondade». São estas verdades que nos fazem rejubilar pela vida destes oito mil milhões de pessoas que habitam a nossa casa comum, as quais não são demais.

 

Pedro Vaz Patto


foto: Ryoji Iwata on Unsplash