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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Lobos, serpentes e pombas

O confessionário tanto defende o penitente como o confessor

 

Eis que eu vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede pois prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10, 16). Nestes tempos de violenta perseguição à Igreja, estas palavras de Nosso Senhor ganham especial actualidade: que ninguém se escandalize com a voracidade dos lobos, mas que a prudência dos pastores seja como a das serpentes, para defender a simplicidade das pombas.

Sendo a confissão sacramental o espaço adequado para confidências mais íntimas, pode-se tornar ocasião de abusos que, por acontecerem em sede sacramental, revestem uma especial gravidade moral e, por isso, podem ser punidos com a excomunhão, a máxima pena canónica. Se o confessor não for prudente na administração deste sacramento, nomeadamente quando acolhe fiéis muito novos, ou especialmente vulneráveis, pode provocar o escândalo dos pusilânimes. Nestes casos, para proteção dos penitentes, mas também do confessor, todas as cautelas são poucas e, portanto, seria uma grande imprudência não respeitar as normas canónicas que tendem a evitar estes casos.

Com efeito, o Código de Direito Canónico determina que “o lugar próprio para ouvir as confissões sacramentais é a igreja ou o oratório” (cân. 964, §1). Também estabelece, com carácter geral, que “existam sempre, em lugar patente, confessionários, munidos de uma grade fixa entre o penitente e o confessor, e que possam utilizar livremente os fiéis que assim o desejem” (cân. 964, §2). Ao dizer-se ‘sempre’, expressa-se uma obrigatoriedade de que nem a Conferência Episcopal pode dispensar, embora possa estabelecer normas a este propósito, desde que salvaguardem esta exigência. A lei canónica também impõe um critério restrictivo, em relação a possíveis excepções: “não se oiçam confissões fora dos confessionários, a não ser por causa justa” (cân. 964, §3).

É escusado explicitar as razões de elementar prudência que fundamentam estas normas: num ambiente de escândalos causados pelos abusos de menores por sacerdotes, nomeadamente por ocasião da administração do Sacramento da Reconciliação e Penitência, há que redobrar a prudência. Descurá-la seria, certamente, temerário. Em caso de necessidade, sempre se pôde e deve continuar a poder confessar fora da sede própria, mas não de forma generalizada porque, nesse caso, poder-se-iam cometer abusos de menores, ou de pessoas especialmente vulneráveis ou, pelo menos, dar azo a comentários e juízos pouco abonatórios da dignidade do sacramento e da idoneidade do confessor. Se, em tempos normais, estas recomendações já eram razoáveis, por maioria de razão agora, em que a opinião pública está justamente escandalizada pelos casos de pedofilia praticados por padres. Infelizmente, quando se trata de abusos de menores por sacerdotes, a presunção já não é de inocência, mas de culpa generalizada.

Bom seria que a Conferência Episcopal Portuguesa, que já teve o mérito de constituir a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, houvesse por bem recordar a todos os párocos, sacerdotes e confessores o n.º 2 do cân. 964, recomendando que, pelo menos nos próximos tempos, só se atenda de confissão na sede própria, “a não ser por causa justa”. Se, em plena pandemia, a Conferência Episcopal proibiu temporariamente a comunhão directamente na boca, bem como a saudação da paz, pela mesma razão de prudência pode agora providenciar para que, em Portugal, a administração do Sacramento da Reconciliação e Penitência não seja ocasião propícia para o abuso de menores. Para este efeito, nem sequer precisa de criar uma nova normativa, pois basta recordar a obrigatoriedade do uso da sede própria, onde deve existir “uma grade fixa entre o penitente e o confessor”. Assim o exige o bem da Igreja, das crianças e das pessoas mais vulneráveis, como o bom nome dos confessores. 

Lobos sempre os houve e haverá, mas não nos falte a prudência das serpentes, para que nunca seja manchada a simplicidade das pombas.

 

P. Gonçalo Portocarrero de Almada