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A. Pereira Caldas
Outra crise
1- Só se fala da crise. Toda a gente fala. E o país ouve. À beira de um ataque de nervos, confuso e aturdido. Sem outra alternativa que não seja esperar.

Parece até que não há outras crises, por esse mundo fora.

Mas há.

Não são necessariamente crises financeiras ou económicas como a “nossa”, com imediatas repercussões no dia-a-dia de quem as sofre. São, entre outras de menor impacto, crises comportamentais de cariz ético ou humanista, cujas consequências, gravíssimas, se projectam no tempo.

Exemplo recente é o da morte de Kadhafi, na Líbia.

E, não haja dúvidas nem hesitações: quando se festeja a morte de um ser humano, por actos, palavras ou silêncios, até mesmo ao nível de altas esferas políticas mundiais, algo está profundamente errado. Uma coisa é festejar-se a queda de um regime brutalmente ditatorial, construído sobre sangue e violência, outra, muito diferente, é fazer da morte do seu líder um motivo de regozijo. Ainda por cima quando parece cada vez mais provável que ele tenha sido sumariamente executado.

Kadhafi era um terrorista e abrigou terroristas. Também era, segundo rezam as crónicas, um homem implacável que não hesitava em eliminar quem se interpusesse entre ele e os seus desígnios. Poderá até afirmar-se que a sua morte seria necessária para que o regime acabasse de vez. Nada disso legitima, no entanto, a festa exuberante nas ruas de Tripoli que se seguiu ao anúncio da sua morte, embora, diga-se, bem mais compreensível do que o sentimento, no mínimo de alívio disfarçadamente satisfeito, manifestado por dirigentes do mundo ocidental – mesmo aqueles que, ainda não há muito tempo, o recebiam e visitavam em nome de altos interesses económicos. E muito menos legitima, escusado seria dizê-lo, a aceitação como natural e lógica da sua possível execução.

É o direito à vida que está em causa – e esse é o primeiro de todos os direitos. Inviolável. Sem excepções e em todas as circunstâncias. Por muito que custe aos inveterados defensores da pena de morte.

A verdade é que, perante tais atitudes – neste caso como noutros mais ou menos recentes – dir-se-ia que se regrediu até à Idade Média, onde a morte era um espectáculo público e “o olho por olho, dente por dente” a forma mais utilizada de fazer justiça.

 

2 – Mas, ainda a propósito da morte de Kadhafi, não se pode deixar de salientar um facto lamentável: vários canais internacionais de televisão, alguns de referência – portugueses também – exibiram largamente uma cena de espancamento do ex-líder líbio, de tal forma crua e violenta que bem poderia pertencer a um filme de terror de terceira ordem. Nem os costumados avisos prévios de que a cena seria susceptível de impressionar espectadores sensíveis poderá justificar a falta de bom senso e de sentido de responsabilidade que permitiram a sua exibição.

E, no entanto, no cerne da questão está algo tão simples e transparente como isto: a liberdade de expressão e o direito de informar e de ser informado têm limites intransponíveis quando estão em causa valores fundamentais como o da dignidade humana.

E foi ela, a dignidade humana, que foi profundamente agredida quando aquela cena invadiu a casa de cada um sem bater à porta e, muito menos, pedir licença.