Entrevistas |
Padre Rui Valério, Missionário da Misericórdia
“A misericórdia traduz-se em ato concreto”
<<
1/
>>
Imagem

Sabia que cada sector de pastoral da paróquia da Póvoa de Santo Adrião tem aplicado uma das 14 obras de misericórdia? O pároco, padre Rui Valério, é um Missionário da Misericórdia enviado pelo Papa e destaca ao Jornal VOZ DA VERDADE que “a grandeza da misericórdia é colocar uma presença junto de quem vive na fragilidade”.

 

São Luís Maria de Monfort, fundador da sua congregação (Monfortinos), foi enviado pelo Papa Clemente XI, no início do século XVIII, como Missionário Apostólico. Cerca de 300 anos depois, o padre Rui é enviado pelo Papa Francisco como Missionário da Misericórdia…

Calma… (risos), vamos por partes: é curiosa a relação entre Papa Clemente XI, São Luís de Monfort e Patriarcado de Lisboa. Estamos nos 300 anos da elevação de Lisboa a Patriarcado e nos 300 anos do falecimento de São Luís de Monfort, que ocorreu também em 1716. Há uma distância de meses: São Luís morreu a 28 de abril e o Patriarcado foi elevado a 7 de novembro. As circunstâncias e os motivos que levaram o Papa Clemente a enviar, para França, São Luís como Missionário Apostólico são uma chave de compreensão para entender o próprio pontificado de Clemente XI. Depois de ter experimentado, em França, tantas iniciativas de missões populares, São Luís de Monfort deslocou-se de Paris a Roma, a pé, com um pedido, em tom de discernimento, para a sua vida: que o Papa lhe desse permissão para ir para o Québec, que na altura era a grande terra de missão da Igreja francesa. Ser missionário era o grande sonho de São Luís. O Papa Clemente XI disse-lhe: ‘Serás missionário, mas vais ser missionário em França’. E foi quando lhe atribuiu o título de Missionário Apostólico. Quando hoje analiso, contemplo, vejo e aprofundo que Lisboa foi elevada a Patriarcado pelo mesmo Papa Clemente XI – e tendo em conta todas as razões e circunstâncias históricas desse ato –, não haja dúvida que era sempre o mesmo ponto que este Pontífice tinha em mente: a Europa precisava de uma evangelização profunda, íntima, interna. Claro que havia muitas igrejas e procissões, e até prática de vida cristã e de frequência de sacramento, mas por baixo disso havia todo um trabalho missionário apostólico que era preciso fazer.

Não me comparo com o São Luís de Monfort, cujo perfil se insere no de Missionário da Misericórdia, traçado pelo Papa Francisco no número 18 da bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, ‘Misericordiae Vultus’. São Luís de Monfort ensina-nos que ser Missionário da Misericórdia significa, antes de mais, sentir-se amado. Ou, para usar a famosa expressão do Papa Francisco, sentir-se ‘misericordiado’: ou seja, a misericórdia de Deus atuar primeiro nele, para depois poder agir nos outros. Este é que é o ponto. A misericórdia leva-nos sempre a este primeiro passo de me sentir, de me descobrir, de me reconhecer perdoado, amado, ‘misericordiado’ por Deus, para poder testemunhar a sua misericórdia. Dentro das fragilidades da minha vida, das minhas capacidades e do nosso ministério.

 

O que mais guarda do encontro em Roma, em fevereiro, onde o Papa fez o envio dos 1071 Missionários da Misericórdia?

Na primeira grande ação com os Missionários da Misericórdia, na manhã de terça-feira, 9 de fevereiro, fomos distribuídos por diversas basílicas de Roma, a fim de permanecermos um tempo em adoração do Santíssimo Sacramento, ao mesmo tempo que nos íamos confessar. Da parte da tarde, concentrámo-nos junto ao Castelo Sant’Angelo e iniciámos uma peregrinação até à Porta Santa da Basílica de São Pedro, que atravessámos. A basílica estava praticamente reservada para nós, Missionários da Misericórdia, e permanecemos algum tempo em silêncio e oração junto aos corpos de São Leopoldo e de São Padre Pio, que estavam propositadamente no local. Dali seguimos para um encontro com o Santo Padre, numa das salas do Vaticano. Foi um encontro maravilhoso, onde o Papa nos dirigiu uma palavra e onde frisou muito um aspeto que ainda hoje recordo: a misericórdia é uma atitude, a misericórdia é uma ação. Além de ser um sentimento, um afeto que brota do coração de Deus, das entranhas de Deus, a misericórdia traduz-se em ato concreto. O Papa Francisco disse-nos muitas coisas, além do que tinha escrito. Por exemplo: ‘Missionários, se um dia acordarem mal dispostos, nesse dia não vão confessar. Missionários, nunca deixem que um penitente saia junto de vós sem levar qualquer coisa, quanto mais não seja uma bênção e um abraço’. Depois do encontro, fomos para os claustros e jantámos todos juntos. No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, participámos de manhã na audiência-geral, na Praça de São Pedro, onde o Papa voltou a referir a relação misericórdia - justiça. O grande envio foi na Missa das 17 horas, em São Pedro, onde fomos oficialmente enviados pelo Papa Francisco. Foram celebrações muito bonitas, com uma presença global, onde pudemos partilhar e conviver uns com os outros. Ficámos a saber que a paróquia de um dos Missionários ia ser um jipe, na Austrália, para percorrer diversas regiões e ministrar o sacramento da Reconciliação. Foi de um enriquecimento, que nos faz perceber a longitude da própria grandeza da misericórdia de Deus, que realmente não tem fronteiras. A misericórdia de Deus não tem fronteiras e é para penetrar e chegar a todo o lado, tendo em conta sempre o homem na sua fragilidade.

 

Como se convence um amigo a confessar-se ou a ir falar com um padre?

Falar com um padre é o que nós mais temos. O que tenho verificado é que o sacerdote é muito procurado e se nós, ao fim daquela meia hora, hora ou hora e meia, quiséssemos apelidar de confissão o que ali estivemos a exercitar se calhar temos alguma dificuldade. Mas as pessoas sentem necessidade de ter uma luz, um conselho, de ouvirem uma voz que as elucide, que as ajude. O sacerdote é procurado, nem sempre para a confissão, mas havemos de lá chegar! O discernimento, tanto do confessor como da pessoa confessada, o penitente, está nisto: compreender como ao lado de um problema está uma atitude, um gesto ou um sentimento, que deve questionar, porque pode estar ali parte da razão para a existência daquele problema, que nós chamamos pecado.

 

E hoje, há sentido de pecado?

Isso é um problema verdadeiro. É importante esta pergunta ser refletida, porque já o Papa Pio XII dizia que um dos graves e grandes problemas do nosso tempo é exatamente a perda do sentido do pecado. Pio XII foi o primeiro e, a partir dele, todos os Papas e pastores se têm referido a isso. A filósofa de origem judia Hannah Arendt falava de banalidade e de banalização do mal. Mas tudo isto não ajuda muito a consciência da pessoa na necessidade que ela própria tem para se aproximar da grandeza do perdão e da misericórdia de Deus.

Por outro lado, estou convencido que o Ano da Misericórdia tem um ponto privilegiado que é esta associação ao pecado. Mas a misericórdia é mais do que isso, e não podemos reduzi-la apenas ao sacramento da Reconciliação. Desde logo temos as obras de misericórdia, as espirituais e as corporais. O que significa que o Ano da Misericórdia deve efetivar e aumentar a dedicação do povo de Deus, da Igreja, a trabalhar ativamente para permitir a quem vive sem teto, sem roupa, sem comida sentir a ternura de Deus nessa sua situação. Perceber que Deus pensa nele.

 

De que forma a paróquia da Póvoa de Santo Adrião tem vivido o Ano da Misericórdia?

A coisa pior que pode acontecer a quem tem fome, a quem sente ameaçada a estadia na sua casa porque não tem dinheiro para pagar a renda, a quem sente a ameaça de lhe cortarem a luz ou a água é sentir-se sozinha. E o Ano da Misericórdia, se nós queremos efetivar através das obras de misericórdia, deve servir para fazer sentir que há sempre alguém que os acolhe e os ajuda. Na nossa paróquia estamos a fazer um esforço para que ninguém seja despejado da sua casa porque não pode pagar a renda – isso não existe aqui! Pode acontecer, mas é porque nós não sabemos. Também ninguém fica sem água ou luz porque não tem dinheiro para pagar a conta. Nem ninguém fica sem medicamentos. E temos ido mais longe: pessoas que estão a estudar e cujas propinas são caras, nós temos ajudado. O mistério e a grandeza da misericórdia é exatamente isto: colocar uma presença junto de quem vive na fragilidade. E uma presença que não se limite apenas a lamentar-se da má sorte, mas que seja ativa e pró-ativa.

Na paróquia da Póvoa de Santo Adrião temos iniciativas a três níveis: celebrativo, formativo e das obras de misericórdia. A nível celebrativo, organizamos mensalmente uma celebração de impacto vicarial, na igreja paroquial, nas primeiras quintas-feiras de cada mês, em que vem um sacerdote, às 16 horas e está até às 22 horas, para dar possibilidade às pessoas que trabalham e chegam tarde a casa de se confessarem. Este momento contempla confissões, Eucaristia, adoração e bênção eucarística. Temos tido também o jubileu dos idosos, dos doentes, da catequese e, paralelamente, há grupos paroquiais, vicariais e até de outras dioceses que se organizam, no âmbito da catequese, dos escuteiros e da família, para fazerem o percurso [ver caixa] criado na igreja, até à confissão. Ao nível do aprofundamento, foram organizadas, na igreja paroquial, quatro conferências, sendo que a última decorre no dia 21 de junho, terça-feira, às 21h30, com o senhor Cardeal-Patriarca, que vai falar sobre ‘A misericórdia, alma da missão’. Na paróquia tivemos ainda a lectio divina sobre a misericórdia, e a nível vicarial foram organizadas conferências periódicas relacionadas com a misericórdia, que decorreram noutras igrejas da vigararia. Por fim, a aplicação prática das obras de misericórdia. Além do que já falámos, ao nível do pagamento das rendas, água, luz, medicamentos e mesmo propinas, procurámos que no âmbito de cada sector da paróquia, à sua maneira e dentro do carisma de cada grupo e movimento, eles vivessem uma das 14 obras de misericórdia. Temos coisas interessantes, como o agrupamento de escuteiros que decidiu ir arranjar casas no bairro do Barruncho. Uma vez por semana, ao sábado, vão arranjar o teto ou as paredes de alguma habitação. Depois temos as crianças da catequese que vão encontrar pessoas que estão sozinhas em casa. O fundo de apoio da paróquia, juntamente com o centro social paroquial, promoveu um almoço de Natal e na distribuição de alimentos tem tido esta atenção particular para evitar que haja quem passe fome verdadeiramente. Neste ano temos estado também muito sensíveis no acompanhamento dos falecimentos – expresso na obra de misericórdia ‘enterrar os mortos’. Não só na oração mas também no convívio, ao nível de uma presença que acompanha os familiares dos que já partiram.

 

Termino com a mesma pergunta que fiz ao cónego Luís Alberto Carvalho, o outro Missionário da Misericórdia do Patriarcado de Lisboa: por que é tão difícil perdoar?

O perdão vem de Deus. É só em Deus que eu perdoo. Humanamente falando, é-me possível desculpar. Humanamente falando, é-me possível compreender. Mas perdoar, é algo que só Deus me dá força para isso. Observemos a palavra ‘perdoar’: que outra palavra portuguesa tem a mesma raiz? ‘Perder’. Quando eu perdoo, há sempre qualquer coisa que eu tenho que perder. Se nós olharmos para o mistério da cruz, fomos perdoados e o perdão que recebemos de Deus significou que Alguém perdeu a sua própria vida. Quando perdoo, às vezes tenho de perder aquela coisa do ter razão, do estar cheio de razão, porque o perdão só é possível se eu perder o meu orgulho. Nem eu, nem ninguém cresceu e foi educado na cultura do perder, mas do ganhar… mas perdoar significa perder-se. Quando me sinto perdoado, verdadeiramente, por Deus, serei capaz e sinto-me com forças para perdoar os outros. Perdoa quem se sente perdoado.

 

________________


Percurso no Santuário da Misericórdia

Neste Ano da Misericórdia, a paróquia da Póvoa de Santo Adrião preparou um percurso para os fiéis que se vão confessar. No Santuário da Misericórdia, que é a igreja paroquial da Póvoa de Santo Adrião, uma vez atravessada a Porta Santa da Vigararia de Loures - Odivelas, é iniciado um percurso de 9 momentos [1º Porta da Misericórdia; 2º Pia de Água Benta; 3º Escadaria (Sicómoro) - A Misericórdia e a Interpelação pessoal; 4º Palavra de Deus - A Misericórdia e a Palavra de Deus; 5º Sacrário - A Misericórdia e a Eucaristia; 6º Imagem de Nossa Senhora da Anunciação - A Misericórdia e a Anunciação; 7º Pia Batismal e Círio Pascal - A Misericórdia e a Profissão de Fé; 8º Confessionário - A Misericórdia e o perdão; 9º Indulgência - A vida nova pelo perdão], que termina junto ao confessionário. “Neste percurso, ao percorrer todos aqueles passos, a pessoa quando chega ao momento de efetivamente se aproximar do sacramento da Reconciliação – não digo que venha com uma atitude diferente – vem com uma profundidade de análise face à sua própria vida que nos emociona”, observa o pároco, padre Rui Valério, que tem notado “o povo de Deus muito sensibilizado e muito tocado para este mistério e ministério da misericórdia de Deus”.

entrevista e fotos por Diogo Paiva Brandão
A OPINIÃO DE
Guilherme d'Oliveira Martins
Quando Jean Lacroix fala da força e das fraquezas da família alerta-nos para a necessidade de não considerar...
ver [+]

Tony Neves
É um título para encher os olhos e provocar apetite de leitura! Mas é verdade. Depois de ver do ar parte do Congo verde, aterrei em Brazzaville.
ver [+]

Tony Neves
O Gabão acolheu-me de braços e coração abertos, numa visita que foi estreia absoluta neste país da África central.
ver [+]

Pedro Vaz Patto
Impressiona como foi festejada a aprovação, por larga e transversal maioria de deputados e senadores,...
ver [+]

Visite a página online
do Patriarcado de Lisboa
EDIÇÕES ANTERIORES