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António Bagão Félix
A Doutrina Social da Igreja face à crise

A primeira e mais decisiva causa da crise por que vem passando o mundo (e também Portugal) reside na vertente comportamental resultante de uma forte erosão ética. Vivemos um tempo em que emergiram as consequências de um mundo em que a fronteira entre o bem e o mal se diluiu numa espécie de uma porosa “pedra-pomes” axiológica. A isto acrescem a deficiente conjugação entre direitos e deveres, o enfraquecimento do sentido de responsabilidade e a incapacidade de os poderes públicos responderem em plenitude às exigências da “hipoteca social” que impende sobre todo e qualquer bem económico ou social.

O relativismo e o minimalismo éticos fizeram germinar e propagar a indiferença. Promoveram a estatística à categoria de mãe de todas as análises frias e racionais. Igualizaram moralmente, fins e meios. Transformaram em ícones a copiar, os “vencedores” seja nos negócios, no desporto, na política, na comunicação social, e ignoraram os “perdedores” entre os quais estão os pobres, os velhos, os sós, os que não têm voz, os que não consomem.

Ficou também provado que não bastam as leis se a acção das pessoas não radicar em princípios éticos sólidos. É que nenhuma lei proíbe o egoísmo, a ganância, a mentira, o desprezo, o ódio, a malvadez, como infelizmente podemos constatar. Estes tempos mostram também os custos humanos e sociais de se olhar para as pessoas como meios ou instrumentos e não como fins e sujeitos.

Ao mesmo tempo, premiou-se o arrivismo, o mediatismo inconsequente, a visão de curto-prazo. Bento XVI chamou a atenção na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2008 – significativamente intitulada “Combater a pobreza, construir a paz” – para a ambivalência e o carácter não necessariamente determinista da globalização. Refere que se é certo que esta vem produzindo benefícios à escala mundial (embora nem sempre equitativamente repartidos), também gera novos fenómenos de risco e dependência através de uma preferência por “lógicas de brevíssimo prazo desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo”.

Na sua recente Exortação Apostólica o Papa Francisco denunciou, de uma maneira frontal, directa e simples, os problemas que advém do que apelidou de tristeza individualista, individualismo pós-moderno e globalização da indiferença.

Entre muitas considerações, salientou: “Hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social”. “Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida”.

No plano da vida económica e social, o princípio fundamental da Doutrina Social da Igreja (DSI) é o princípio da centralidade e dignidade da pessoa humana, princípio, fim e sujeito de todas as instituições. Associado a estes princípios está o direito à propriedade privada mediante o trabalho, mas que não sendo absoluto e intocável está subordinado ao direito ao uso comum. Logo, a propriedade privada é um meio, não um fim em si mesmo. Desempenhando uma insubstituível função social, daí decorre que sobre ela impenda o que na DSI se chama uma verdadeira e justificada “hipoteca social”. Claro está que nos tempos de hoje há que reler este princípio à luz das novas formas de propriedade do conhecimento, de novos recursos técnicos e da globalização.

Para se ver a actualidade da DSI, transcrevem-se, a título de exemplo perante tão vasto legado, pequenos excertos de vários textos e Encíclicas que parecem escritas para os dias por que passamos.

Da Encíclica Centesimus Annus de João Paulo II (1991): “Não se podem negar as vantagens do mercado, mas também não se podem ignorar as suas limitações, e muito menos cair numa ‘idolatria’ do mercado”.

Do Conselho Pontifício Justiça e Paz (2004): “A mobilidade também aumentou o risco de crises financeiras. Se as transacções financeiras superam largamente, em volume, as transacções reais, corre-se o risco de seguir uma lógica voltada para si mesma, sem conexão com a base real da economia. Uma economia financeira cujo fim é ela própria está destinada a contradizer os seus fins”.

Da Encíclica Quadragesimo Anno de Pio XI (1931) escrita no rescaldo da Grande Depressão: “A vida económica é juntamente social e moral (…) É coisa manifesta que nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, se acumula um poder imenso e um verdadeiro despotismo económico nas mãos de poucos que as mais das vezes são simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia (…)”. “Este acumular de poderio e recursos, nota característica da economia actual, é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência”.

Mudam os tempos e os meios, mas permanecem as grandes questões.

A DSI – embora às vezes esquecida e até ignorada no seio da Igreja e dos cristãos – responde profunda e actualizadamente aos problemas e desafios de hoje e de amanhã. Por que esperam os cristãos para com o seu exemplo fundado neste património universal que é a DSI fazer esta revolução (conversão) que é antes de mais espiritual e ética?