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António Bagão Félix
Não acrescentemos mais vítimas às vítimas

Neste meu espaço na Voz da Verdade, já escrevi sobre as situações dramáticas e hediondas de abusos sobre crianças e jovens no seio da Igreja. Como então disse, sinto vergonha, como pessoa, e amargura e perplexidade, enquanto católico. Sejam quais forem as consequências, é sempre necessário aprofundar a verdade por mais dolorosa que seja, assumir integralmente as consequências das situações e garantir a esperança baseada na prevenção, como expressão de exigência e na reparação, enquanto acto de justiça e de responsabilidade.

Abordei também a voracidade mediática que tudo generaliza, tudo atropela, tudo equipara no mal e para o mal. Por isso, todo o cuidado deve presidir ao trabalho de instituições ou comissões que recebem, tratam e encaminham denúncias, depoimentos, circunstâncias, contextos.

Compreendo o enorme sofrimento que advém das vítimas reportarem no presente a dor e os traumas de tempos passados e imagino quão difícil é ter a coragem de relatar situações ignóbeis e traumáticas.

Reconheço que, nestas dramáticas circunstâncias, o anonimato possa ser em certos casos um requisito necessário para o depoimento de uma vítima, mas assim sendo, há que assegurar o discernimento, a justiça e a ética dos cuidados para saber tratar diferenciadamente os relatos e tirar consequências com extremo cuidado. Não basta enfileirar tudo numa lógica de mera intermediação de ocorrências, sem a devida ponderação do modo e da substância acusatória. É que neste tipo de crimes a prova na maioria dos casos é estritamente testemunhal. Neste âmbito, é imprescindível encontrar um equilíbrio adequado entre a protecção da confidencialidade, a prevenção de represálias ou de estigmatização, mas também os deveres e a responsabilidade de quem escolhe o anonimato. Como tal, é imperativo estar vigilante face ao perigo de credibilizar, mais ou menos automaticamente, denúncias absolutamente anónimas ou acusações imprecisas, vagas ou fantasiosas.

Sempre me incomodaram generalizações abusivas, métodos indutivos deslizantes, estatísticas que, através de frios números, igualizam diferentes graduações comportamentais. Não ignoro a pressão pública que está subjacente a estes tão tristes acontecimentos que, diferentemente de outras situações, põe de lado o princípio da presunção de inocência. Constato a sofreguidão do “pelourinho público” que, entre a realidade e a fantasia, entre a culpa e a inocência, tudo leva indistintamente numa espécie de tsunami e submete os atingidos a um julgamento prévio e unilateral sem defesa. Não acrescentemos, pois, mais vítimas às vítimas.

Vem isto a propósito do que se passou com o Padre Mário Rui Pedras que, em razão de uma queixa anónima, difamatória e infundada, foi suspenso e ficou proibido do exercício público do ministério. Segundo as suas palavras foi um tempo de provação, um caminho de cruz percorrido em silêncio e em sofrimento. Não estranhei o apetite da comunicação social pelo caso que o atingiu danosamente, sendo-lhe até apostos o epíteto de conservador e tradicionalista no seio da Igreja, e confessor de um político, quais “pecados capitais” para certa imprensa auto-intitulada de referência e de pretenso progressismo ateísta.

Quase três meses depois, e terminada a devida averiguação, foi esta dada por concluída e proposto ao Senhor Bispo que acabasse o “afastamento preventivo” do sacerdote, dada a inverosimilhança da denúncia e a prevalência da verdade. Como ele escreveu na mensagem de 15 de Junho aos paroquianos de São Nicolau e Santa Maria Madalena, “a justiça foi reposta, mas o dano manter-se-á”.

Tenho pelo Padre Mário Rui Pedras uma estima e admiração pelo exemplar trilho da sua já longa vida eclesial. Estou solidário com o brutal sofrimento diante de tão ignominiosa e infundada acusação. Entendo que lhe é devida uma reparação pelos danos causados pela precipitada e injusta calúnia de que foi alvo. “Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal de vós. Alegrai-vos e exultai, pois é grande nos céus a vossa recompensa” (Mt 5, 3-12).

 

António Bagão Félix
(texto escrito com a grafia anterior ao AO90)

foto: Paróquia de São Nicolau