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António Bagão Félix
Ainda e sempre a solidariedade
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Socorro-me de Immanuel Kant para exprimir de outro modo o dever de solidariedade. Distinguia ele o dever passivo (obligatio obligati) do dever activo (obligatio obligantis). O primeiro é o que resulta da obrigação perante a lei, o contrato, a formalidade. Já o segundo, é a obrigação em que nos auto-constituímos. Ninguém nem nada nos obriga, a não ser a nossa consciência. Neste enquadramento axiológico, a solidariedade é um dever activo. Que nasce em nós e pode fermentar nos outros. É esta não obrigação da obrigação que lhe confere o seu profundo e inestimável valor personalista e resultado relacional.
A solidariedade não é uma posição, um estado. É um caminho, uma relação. De alguém para outrem. E por bem. Uma relação não necessariamente de proximidade geográfica ou física, mas de vontade e entreajuda. Para a solidariedade a noção da relação é mais a do próximo ainda que distante do que do vizinho ainda que perto. Nesse sentido, é necessário acrescentar à globalização das trocas, dos bens, dos movimentos a maior e mais completa de todas: a globalização da caridade.
A caridade é o grande património comunitário do Cristianismo. Caridade é muito mais do que filantropia, altruísmo ou assistência. É o oxigénio da doação social através da confluência do ter e do não ter através do ser. É amar sem contrapartida. Como se diz no Novo Catecismo Católico a caridade é “o fruto do Espírito e a plenitude da Lei”.
A caridade é a inteligência do coração e o coração da inteligência. Exige, como tão bem disse Jean Guitton, “o esquecimento de nós mesmos”. Ou como S. Paulo: “a medida do amor é a de amar sem medida”. A solidariedade altera a densidade social da pólis. A solidariedade só o é se for praticada como um valor e não como uma simples tecnicalidade. Neste âmbito, é indispensável lutar por uma renovada ética de solidariedade. A solidariedade é um princípio ordenador para a realização do bem comum, tendo em atenção a “hipoteca social” que impende sobre qualquer bem privado ou público. A solidariedade para ser genuína, autêntica, enriquecedora, geracional e persistente tem que se edificar de baixo para cima, potenciando os valores do voluntariado, da solicitude e da participação como alicerces de uma atitude criativa, espontânea de solidariedade não intermediada, menos burocrática, mais desinteressada e amiga, mais conforme à natureza do Homem. Por outro lado, uma nova ética nas relações sociais pressupõe que o social não seja visto como um custo ou passivo, mas antes como um recurso indispensável para a geração de uma sociedade mais equilibrada. E se é certo que o social, desligado da necessária geração prévia de riqueza pode redundar em puro e inconsequente utopismo, não é menos verdade que as preocupações sociais não podem ficar submergidas pelo primado da economia e da produção, insensível à realidade social. Ambas as visões corroem o exercício da solidariedade. A solidariedade deve ser concretizada como princípio ordenador, virtude moral, dever social e geracional, valor radicalmente humano e expressão de profunda responsabilidade pessoal. Solidariedade como expressão de vida livre em sociedade e não como uma norma exterior ou imposta. Solidariedade fundamentada em princípios inalienáveis de dignidade da pessoa humana e não em interesses circunstanciais. Solidariedade praticada como um estímulo activo e não como uma dependência estigmática. Solidariedade como referência de exemplaridade geracional e não como uma imposição ou constrangimento mais ou menos mecânico.