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Hermínio Rico, sj
Defender a Democracia

Mas a Democracia está em perigo? A Democracia está sempre em perigo. A Democracia não é um dado da natureza humana nem será nunca um dado adquirido da civilização. A Democracia é expressão de uma cultura e assenta no respeito de um conjunto de valores que precisam constantemente de ser preservados, promovidos e transmitidos eficazmente a cada nova geração. E, em momentos de crise mais aguda, estes valores e a democracia – enquanto o sistema mais adequado (por muito imperfeito que seja) para alcançar os consensos na procura do melhor serviço ao bem comum – precisam de ser defendidos dos ataques demagógicos, populistas, oportunistas dos inimigos da democracia.

Os inimigos permanentes da democracia são aqueles que procuram outros meios de impor as suas ideias porque não são capazes de as fazer triunfar e sustentar pela adesão maioritária livre e reflectidamente expressa. E igualmente inimiga da democracia – dum modo latente, que as situações mais agudas de crise trazem à luz – é a reacção emocional pouco ou nada pensada que não mede consequências nem examina razões e se deixa ingenuamente manipular pela paixão do imediato. Quando os primeiros inimigos se aproveitam da circunstancial disseminação generalizada do poder atractivo da segunda atitude, a democracia fica mesmo em perigo.

Quando a Democracia está em perigo é preciso defendê-la. Defendê-la pela denúncia das suas ameaças e pela promoção activa dos seus valores.

Nos valores da democracia estão os direitos a cada um manifestar livremente a sua opinião, a possibilidade de expulsar governos que não satisfazem e a existência permanente de alternativas. Mas estes direitos não se podem separar dos seus deveres correlativos. A liberdade exige responsabilidade e só se sustenta se é por esta acompanhada. A oposição é um direito, mas tem o dever de lealdade e de ser construtiva, movida pelo desejo de servir melhor o bem comum e disponibilidade concreta para o fazer, e não apenas pelos instintos vingativos de destruir o adversário a todo o preço, sem cuidar das consequências para a sociedade. A proposta de alternativas é essencial, mas isso impõe o dever de ir além da imediata rejeição de tudo o que é proposto. O objectivo de substituir no poder os que governam é legítimo, mas traz consigo o dever de respeitar os prazos eleitorais, as regras do debate público político e a eminente responsabilidade de não pôr em risco de forma duradoura a possibilidade de alcançar os consensos e os compromissos indispensáveis para a democracia vingar e durar.

Hoje, na nossa situação concreta, é preciso identificar e nomear as ameaças à democracia, ameaças que vêm do esquecimento dos seus deveres e se tornam, assim, ataques aos seus valores fundamentais. Há duas que vejo como particularmente perigosas.

É preciso, primeiro, denunciar o ataque sistemático e a desvalorização permanente dos mecanismos da democracia representativa. Só pelos instrumentos da representatividade se podem trabalhar consensos, encontrar equilíbrios e negociar o longo prazo, sobretudo quando são necessários sacrifícios duros no presente para fundar a sustentabilidade social e financeira desejada. Só pela representatividade se dá tempo para a as propostas políticas terem possibilidade de mostrarem o que valem e darem os seus frutos, para serem, depois, a seu tempo, sufragadas pelo voto. Outras formas de pseudo-democracia, sabemos bem, são historicamente antecâmaras de tiranias. Há que ter coragem de desmascarar as modas politicamente correctas que glorificam as “formas alternativas” de democracia só porque são “modernas” e são “alternativas”, sugerindo que são mais genuínas, mais verdadeiras e transmissoras mais fiéis da vontade popular. Faz impressão como se aceita sem questionar que uma manifestação, só porque usou as “redes sociais” para passar a informação, é absolutamente espontânea e totalmente independente. Ou como se identifica a aglomeração de umas centenas de milhares de pessoas (que sejam), com a vontade inequívoca da maioria dos portugueses. São ingenuidades que mostram que a experiência que vivemos no PREC, há menos de quarenta anos, já só perdura na memória de poucos.

É preciso denunciar, em segundo lugar, o mau serviço prestado pelos media quando confundem a sua missão de informar e ajudar a formar opinião. Isso é manifesto quando há um desrespeito pelos limites da função de cada um que às vezes roça a promiscuidade: jornalistas que misturam a notícia com a opinião pessoal; comentadores e analistas que são eles mesmos parte interessada na política partidária activa que é suposto nos ajudarem a perceber pela observação distanciada. Na forma de informar sobre os eventos político-sociais, torna-se, muitas vezes, quase patética a excitação do jovem repórter que não resiste à vertigem do directo e resvala para o sensacionalismo a rasar a histeria. É preciso denunciar a auto-satisfação indisfarçável de poder que se manifesta na tendência dos protagonistas mediáticos da comunicação social sobrevalorizarem tudo o que os põe no centro das atenções e lhes pode permitir subir nas audiências. Os media são indispensáveis à democracia e a sua liberdade deve ser salvaguardada. Mas isso não significa que estejam acima de qualquer crítica, nem que a sua acção não possa comprovadamente ser prejudicial para a própria democracia. Ao valor da liberdade é indispensável a componente da responsabilidade.

Contra estas ameaças, é preciso defender a Democracia. Uma vez assegurada a sua vitalidade e rigor podemos concentrar-nos, então, urgentemente, na discussão aprofundada e construtiva dos meios possíveis para superarmos a crise e encetarmos um caminho de crescimento duradouro e sustentável. Deverão, nesse debate, as oposições exercer o seu indispensável papel crítico, exigente, mas leal e responsável. Será a Democracia a funcionar.