Artigos |
apagar
Mensagem de Sophia (por Guilherme d?Oliveira Martins)

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa do século XX. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente.

E Eduardo Lourenço afirmou certeiramente que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Nela sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim, ainda segundo o ensaísta da “Heterodoxia”, “Cristo Cigano” não espera que o crucifiquem e oferece-se nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina. E “a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos na autora de “Mar Novo” a sede de justiça, que a leva a olhar o “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco Sousa Tavares disse, assim, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". E ainda Eduardo Lourenço diagnosticou "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional".

Sophia foi com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e das circunstâncias. "Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa" (Arte Poética III, 1964). Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excepcionais se aliaram sempre a uma inteligência política arguta.

«Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar». Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim (diz Sophia) uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. Na Assembleia Constituinte foi marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça.” (2.9-75). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. Preferia uma relação limpa e saudável na cidade das pessoas. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se”.

Premonitoriamente, Sophia deixava claro um sentido essencial para a interpretação da Lei Fundamental de 1976 – em que a liberdade é a pedra angular, contra unicidades e dogmatismos. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas Sophia também falou da educação como objectivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”?