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Brotéria #12
A Zona de Interesse
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Filme de Jonathan Glazer, 2024

A abrir, o espectador é confrontado com dois pesados minutos de ecrã a negro. Na banda sonora a música agreste do compositor britânico Mica Levi que no desenrolar do filme se revelará essencial, a par dos restantes elementos da banda sonora. Porém, ainda a negro, começarão a escutar-se gorjeios de pássaros. Quando surge o primeiro plano teremos a chave para esse canto: estamos perante uma idílica paisagem, com um suave rio, um campo onde uma família pacificamente realiza um piquenique e as crianças brincam. Embora o carácter bucólico, ficamos de imediato marcados – e interrogamo-nos – com a luz velada e glauca utilizada pelo director de fotografia Lukasz Zal, e cedo começamos a temer, quando no regresso da família a casa, nos damos conta de que a moradia está encostada a um muro onde, do outro lado, existem altas chaminés lançando em permanência espesso fumo negro. Tal como, desde logo e durante todo o filme, se escutarão na banda sonora (sem nada vermos) gritos, tiros, vozes de comando, imprecações… A “Zona de Interesse” – assim designada oficialmente pelo regime nazi de Hitler – é esse muito largo perímetro onde, além de se integrar o campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia, é também uma área onde se desenvolveram experiências médicas com cobaias humanas, a par de ensaios agrícolas e investigação científica. É nessa zona que se insere a moradia da família Höss: Hedwig, a formiguinha perversa, e o seu marido Rudolf, oficial SS, pai extremoso e comandante do campo da morte, os cinco filhos de ambos e muitos serviçais recrutados e escravizados entre mulheres e homens judeus arrastados para virem a ser exterminados em Auschwitz.

O realizador britânico Glazer construiu o argumento para um filme, que tem gerado prémios e tanto admiração como controvérsia, a partir de inspiração muito livre num romance do também britânico Martin Amis (1949–2023). Contudo, as figuras da família nazi e as circunstâncias referidas no filme não são ficção, mas personagens e factos reais, tendo Rudolf Höss sido condenado pelos Aliados no imediato pós-guerra à pena capital e executado em 1947, não sem antes ter escrito uma autobiografia.

Se aquilo que é surpreendente no filme de Glazer é o facto de construir a abordagem ao que se passava em Auschwitz sem nunca o dar a ver, mas construindo a intriga à volta da normalidade da rotina quotidiana desta família comprometida de muito perto com o regime e a matança sistemática levada a cabo por aquele, em boa verdade, deve referir-se que este tipo de dispositivo narrativo já se delineara no filme do húngaro László Nemes, O Filho de Saúl (2015), que relata de forma muito impressiva as angústias de um Sonderkommand judeu encarregado de transportar cadáveres e cinzas dos seus congéneres num dos crematórios de Auschwitz: nunca vemos a matança, mas sabemos da sua existência e das tremendas consequências da nefanda estratégia.

 

 

Não podemos fugir, ao ver A Zona de Interesse, à afirmação da filósofa judia Hannah Arendt, após assistir ao comportamento do funcionário nazi responsável pela matança de milhares de judeus, Adolf Eichmann, no julgamento que o condenará à morte em Jerusalém: estamos perante a «banalidade do mal». Tem sido sublinhado, a propósito de A Zona de Interesse, que durante muito tempo – e logo no imediato pós-guerra – os responsáveis e carrascos nazis do Holocausto foram considerados como monstros, degenerados da raça humana. Essa seria uma abordagem demasiado simples para enquadrar e isolar essas criaturas. Na verdade, existe hoje um consenso de que se trata de pessoas que, na sua vida familiar e nos seus gostos, não sobressaem do comum dos mortais. O que se encontra pervertido nas suas mentes é o quadro ideológico de extremismo político e as opções racistas e eugenistas que justificam todos os meios postos em prática. No caso, a purificação e o domínio da raça ariana no mundo, com extermínio dos impuros: judeus, ciganos, deficientes, homossexuais. É exactamente neste quadro que Glazer constrói o filme. Por isso, o casal Höss tem, de certa forma, uma vida dupla: ele, pai de família cuidadoso, mas profissionalmente um carrasco insensível; ela, dona-de-casa diligente e realizada, mas tirana implacável das pessoas que a servem. A completar esta perspectiva está a figura da mãe de Hedwig, que surge a visitar a filha na sua bela moradia encostada a Auchwitz: trata-se de uma mulher compensada pela boa situação da filha, mas plena de ressentimentos para com judeus que se cruzaram na sua vida e dos quais quer tirar vingança. Contudo, em dado momento, tendo dado conta da abominação que alicerça o bem-estar daquela casa, parte sem dar qualquer explicação. É impressionante constatar como Rudolf Höss, que cuida carinhosamente da filha sonâmbula, orienta no dia seguinte, calma e insensivelmente, uma reunião com os engenheiros que estudam uma nova técnica para tornar mais eficazes os crematórios do campo de extermínio. Por todos estes sinais o espectador é colocado como testemunha que não pode ignorar que aqueles seres, ilusoriamente pacíficos, naquela mansão, são os agentes de morte, ou cúmplices, do que se passa do outro lado, de onde vêm gritos, tiros, fumo de morte e imprecações. É por isso que se torna significativo o elemento visual pendular, ao longo do filme, com imagem tecnicamente em alto-contraste, de uma jovem que se desloca furtivamente ao “outro” lado para distribuir pelo chão frutos para os prisioneiros, alternando com planos onde Höss lê um conto infantil ao filho, para o adormecer: aquele é um gesto de humanidade de alguém que se contrapõe à frieza normalizada e dúplice dos da casa.

Enfim, o filme de Glazer surge, nestes tempos conturbados, de «uma terceira guerra mundial aos bocados» – como diz o Papa Francisco – e numa Europa onde as ideologias de extrema-direita se espalham, como algo que pode constituir um aviso. Convém por isso ter memória, não esquecer. A História não se repete, mas os cancros morais e políticos permanecem. A «banalidade do mal» não foi extinta. As mentalidades ressuscitam. Por isso o filme encerra voltando ao negro prolongado e à tão impressiva música de Levi. Não há ponto final.

 

Carlos Capucho
Publicado em Brotéria 198-3/março (2024): 301-302

 

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