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Brotéria #11
UMA TRAMA DIVINA. JESUS EM CONTRACAMPO, de Antonio Spadaro SJ
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Paulinas, 2023

Uma análise do subtítulo da obra pode constituir uma boa porta para nela adentrarmos: controcampo (Gesù in controcampo), transposto para português como “contracampo”, é uma técnica cinematográfica mais habitualmente traduzida como “contraplano”, correspondendo ao inglês Shot/reverse shot ou shot/countershot. Consiste na filmagem de duas personagens em planos opostos, levando o espectador a assumir que estão a dialogar uma com a outra. Vários elementos desta definição sobressaem de imediato: em primeiro lugar, a procura de um rosto, de uma identidade mas também de uma relação, de uma pessoa que prende a nossa atenção (ao invés do telemóvel ou das notícias); em segundo lugar, a oposição ou separação entre os interlocutores que, cada um no seu próprio plano, buscam o encontro mediante a linguagem, conseguindo-o ou não; finalmente, tratando-se de uma metáfora cinematográfica, encontramos o terceiro elemento, o potencial espectador que, vendo as personagens sem ser por elas visto, se coloca numa sociedade de imagem.

A imagem e o olhar serão, precisamente, as categorias fundamentais nas quais o autor compõe esta trama ou enredo. O ponto de partida são 50 passagens evangélicas retiradas da liturgia da palavra dominical, comentadas para uma publicação periódica de largo espectro. Faltando o carácter oral ou dialógico do registo homilético, faltam, também, as habituais falácias nas quais este registo com frequência recai: a busca de uma “mensagem”, os lugares-comuns catequéticos, a moralização. Tampouco encontramos aqui uma “biografia” de Jesus que, triturando o poliedro que são os quatro Evangelhos e recorrendo às minúcias arqueológicas da exegese, buscasse o tal rosto histórico tão miticamente objetivo. «Se, em particular, analisarmos os rostos de Cristo do século XX, notamos a prevalência da dimensão do drama da liberdade, da vontade, das escolhas, da tragédia e da esperança. Uma trama divina segue por esse caminho. O Cristo é, de alguma forma, uma “personagem em busca de autor”, o Cristo “um, ninguém e cem mil”. E, neste último caso, o “ninguém” indica a sua inexauribilidade e a sua não coincidência com nenhum dos “cem mil” rostos que se podem representar» [p. 19].

O método inaciano de meditação, mediante a observação e reconstituição por parte do leitor, pela imaginação, do cenário evangélico, é seguido pelo autor para reconstruir uma história ou – utilizando a terminologia de Michel de Certeau – uma fábula, um discurso ao qual é atribuído crédito. A fé enquanto aceitação e confiança nas regras do jogo que é a linguagem não está aqui ausente, pelo contrário: recebe, ao longo do texto, numerosas aportações, dotadas de uma força literária tão significante quanto sintética. «Vivemos como se estivéssemos a tirar fotografias, mas sem termos os instrumentos adequados para as revelar» [p. 46]; «É a imagem de Deus para quem não existe o amigo nem o inimigo, mas apenas o filho» [p. 171]; «A palavra de Jesus não é melíflua e fluída, não é persuasiva nem sedutora. É uma pedra que parte algo que trazemos dentro de nós» [p. 85]; «Não somos mónadas, bolhas filtradas por egoísmos e algoritmos. Jesus restitui à vida e às suas ligações, graças ao seu corpo, ao seu tato» [p. 55].

Que processo explica este movimento de aproximação a um texto evangélico, dividindo-se o escritor entre o carácter sigilosamente pessoal da lectio e a abertura, pela redação dos artigos agora reunidos em livro, a um público legente? O Ausente faz-se presente nos traços da letra da Escritura, de onde provém sempre a frescura, porque capaz de preservar a diferença que abre o leitor, para lá do jogo de espelhos da sua ilusão identitária, ao encontro com o outro. Trata-se de um trabalho que acompanha a própria história do Cristianismo, fundeado na convicção de que «tudo se cumpriu segundo as Escrituras». Spadaro retoma este filão, tecendo – na síntese entre a atenção às palavras do texto e o trabalho criador da imaginação – uma fábula (uma trama) capaz de fundear a sua crença e a sua vida. De um modo plenamente comunicável, porque intrinsecamente pessoal.

 

Publicado em Brotéria 198-2 (2024): 214-215

 

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