Entrevistas |
Mário Pinto Coelho, irmão-provedor da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa
“Dar a dignidade que é devida a qualquer ser humano”
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São 2596 as pessoas – entre as quais, 107 crianças – que morreram, sozinhas e abandonadas, na cidade de Lisboa, nos últimos 20 anos, e foram acompanhadas na morte pela Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa. No cumprimento das “obras de misericórdia espirituais”, a missão é prestar “um funeral tal e qual como o de um familiar nosso”, explica o irmão-provedor da Irmandade, Mário Pinto Coelho, em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE por ocasião da Missa de sufrágio onde “cada um destes irmãos em Cristo” é recordado “de forma particular”.

 

Desde 2004, e pelo vigésimo ano consecutivo, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa celebra anualmente a “Missa de sufrágio por todos aqueles que, ao longo do ano, acompanhou até à sua última morada”. Porquê esta missão, esta obra de misericórdia de “enterrar os mortos” que foram abandonados na cidade de Lisboa?

O objetivo da nossa Irmandade é o cumprimento das obras de misericórdia, de todas, mas especialmente – e nós votámos isso em 2006 – as obras de misericórdia espirituais. Nós temos um protocolo, que é regido pelo decreto-lei que rege a Misericórdia, em que nós somos responsáveis pela parte espiritual e religiosa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Portanto, adotámos como nossa finalidade as obras de misericórdia espirituais, porque a Santa Casa faz – e faz muito bem – o dar de comer, dar de vestir, calçar, escolas, lares, hospitais… ou seja, as obras de misericórdia materiais, digamos assim, são subsidiados pela Santa Casa. Não fazia sentido nenhum estarmos a fazer ‘concorrência’ nesta área e, portanto, dedicámo-nos fundamentalmente às obras de misericórdia espirituais: rezar pelos vivos e pelos mortos e enterrar os mortos.

A principal razão desta nossa missão é porque consideramos que estas pessoas que morrem abandonadas na rua, no rio Tejo, nos hospitais, nos quartos particulares, nas pensões, não tiveram, pelo menos na parte final da sua vida, a dignidade que é devida a qualquer ser humano. São nossos irmãos em Cristo e, quando não há irmãos de família, nós acompanhamo-los e fazemos exatamente as orações, que habitualmente se chama a encomendação.

 

Quantos irmãos e voluntários a Irmandade prestam este serviço e como ele se processa?

Somos cerca de 30 irmãos e voluntários da Irmandade da Misericórdia e de São Roque que estão destinados a este serviço de enterrar os mortos. Somos contactados pela agência funerária e os corpos das pessoas abandonadas só chegam à terra até depois de passarem pela capela do cemitério. Isso, aliás, foi uma conquista porque as capelas dos cemitérios estavam muito abandonadas e a servir de ‘armazéns’. Os funerais antigamente eram feitos no cemitério de Benfica, mas atualmente, por uma questão de espaço, são realizados no cemitério do Alto São João.

Entre nós, irmãos, vemos quem tem disponibilidade para ir acompanhar a pessoa abandonada, compramos um ramo de flores por cada um deles, vamos à capela, o sacerdote ou o ministro extraordinário das exéquias faz a encomendação e acompanhamos até ao local do enterramento, onde é feita uma breve oração. O que se pretende é ter um funeral tal e qual como o de um familiar nosso. Consideramo-lo exatamente da mesma maneira, como um familiar nosso. Portanto, procuramos que os trabalhadores dos cemitérios, quer os da secretaria, quer os coveiros, e até as pessoas que estão no cemitério, olhem para aquele funeral exatamente com os olhos de quem vê uma pessoa igual às outras, com a mesma dignidade, com o mesmo respeito. Isso conseguiu-se e, graças a Deus, que tem sido assim.

 

A SCML suporta os encargos do funeral, sem qualquer distinção de raça, credo ou ideologia, e a Irmandade reza por aquele ser humano abandonado…

Exatamente, a Santa Casa tem a responsabilidade legal de suportar os custos – tal como suporta os custos daqueles que morrem nos seus lares e centros de dia e daquelas pessoas que não têm capacidade financeira de pagar os funerais dos seus familiares. Antigamente, era a vala comum, era todos de qualquer maneira; depois, passou a ser o funeral do pobre. Aqui, não é o funeral do pobre, é o funeral de um nosso irmão em Cristo, com os mesmos direitos e a mesma dignidade que qualquer outro.

Quando acompanhamos crianças, na sua ‘caixinha branca’, é difícil não nos deixarmos dominar por uma agitação interior, por sentimentos desencontrados de dúvida, de incompreensão, de dor. Também estes, Senhor, agora nascidos e já abandonados? Recebidos na tua luz e na tua paz, sejam eles os nossos anjos no Céu.

 

Nestes 20 anos, a Irmandade já enterrou 2596 pessoas abandonadas [ver caixa] na cidade de Lisboa. Só no último ano, foram acompanhadas mais 158 pessoas… Onde estamos a falhar como sociedade?

Estamos a falhar em muita coisa, em muita coisa. Primeiro, na educação como ferramenta para uma nova atividade. Isto transmite-se de pais para filhos. Mas também na falta de trabalho e na falta de habitação. Os grandes problemas que estão neste momento em discussão – a habitação, a saúde e a educação –, tudo isto influencia, e muito, ao longo dos tempos. Este é um problema que não foi resolvido, nem está a ser resolvido, nem tem perspetivas de solução, que é o pior de tudo isto. Esta situação marca completamente, porque, por vezes, as pessoas até têm condições, mas, por qualquer azar da vida, houve incompatibilidades com a família e depois vem a sequência habitual destes dramas todos.

 

Na Missa de sufrágio, cada uma das pessoas abandonadas que foi acompanhada é evocada na oração dos fiéis. Ou seja, as pessoas não são só números, têm nome, têm rosto…

Exato. Todos os anos é assim, fazemos um pequeno estandarte, em pano, com o primeiro nome de cada uma das pessoas que acompanhámos. Ou então, coloca-se ‘Desconhecido, sexo masculino’, ‘Desconhecido, sexo feminino’ ou ‘Nado morto, masculino ou feminino’. Colocamos isso ao longo da teia central da igreja e, este ano, são 158 nomes… Na Missa de sufrágio por estes nossos irmãos, na oração dos fiéis, lemos o primeiro nome de cada uma das pessoas que acompanhámos – muitas vezes até sabemos o nome completo, mas assim reservamos a intimidade das pessoas que acompanhamos. E mais ainda: quando não sabemos o nome da pessoa, nós, passe a expressão, ‘batizamo-la’. Hoje, é o ‘senhor Joaquim’ e as orações são pelo ‘senhor Joaquim’. Para não ser exatamente um desconhecido, alguém que nem um nome tem…

 

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“A paz é obrigatória”

O Patriarca de Lisboa rezou pelas pessoas que morreram abandonadas na cidade de Lisboa. “Da mesma forma que o mundo alberga em si a pobreza e os sem abrigo, da mesma forma que o mundo é povoado pela presença da morte e da mesma forma que o mundo é tantas vezes manchado pelo flagelo da guerra – e daí surge este impulso a rezar pela paz –, nós queremos, enquanto crentes, mulheres e homens de boa vontade, ser elementos e protagonistas de transformação na graça de Deus”, convidou D. Rui Valério, na homilia da Missa de sufrágio, na Igreja de São Roque, rezando depois para que “onde surja violência e guerra, compareça a paz”. No Dia Internacional da Erradicação da Pobreza e dos Sem Abrigo, a 17 de outubro, e na presença da vereadora do pelouro dos Direitos Humanos e Sociais, Educação, Juventude e Saúde da Câmara Municipal de Lisboa, Sofia Athayde, o Patriarca considerou que “a pobreza na sua forma extrema é quando uma alma nem a si própria se quer”.

No início da celebração, o reitor da Igreja de São Roque tinha recordado os falecidos abandonados. “São pessoas, são vidas, temos os nomes delas escritos nestas faixas que estão ao longo da igreja, e vamos hoje fazer memória de cada uma delas”, explicou o padre António Júlio Trigueiros, destacando depois a colaboração da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: “Sem a Santa Casa, esta obra de misericórdia não se poderia realizar”.

Após a Missa de sufrágio, o Patriarca de Lisboa lembrou, em declarações aos jornalistas, as vítimas da “guerra hedionda” na Terra Santa. “A paz não é qualquer coisa que nós possamos ter por adquirido, mas exige a nossa dedicação para ser construída. Hoje, nós lançamos ao mundo este grito: cessem o fragor das armas, cessem o rugir dos canhões, cessem o refrão de mortandade. Vamos dar as mãos, porque a paz é possível”, salientou D. Rui Valério. O Patriarca considerou ainda que o Papa Francisco está a “desempenhar um papel decisivo” na mediação do conflito entre o Hamas e Israel. “Desde logo pela oração que ele não cessa de elevar a Deus. Depois, também já por diversas ocasiões manifestou a sua disponibilidade para ser intermediário, para ser uma ponte, na senda aliás do Evangelho, de uma paz integral. O Papa Francisco, quando fala de paz, tem sempre presente a integralidade: é paz nos dois lados da fronteira, é paz nos dois campos, paz nas duas vertentes”, sustentou, lembrando também palavras do Papa São Paulo VI: “‘Se a paz é possível, ela é obrigatória’”.

 

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As 2596 pessoas abandonadas na morte que foram acompanhadas pela Irmandade

Desde 2004, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa acompanhou 2596 pessoas que morreram sozinhas e foram abandonadas na morte. Pessoas que, “sem família, sem abrigo, sem amor”, morreram na cidade de Lisboa, não sendo o seu corpo reclamado por ninguém. Segundo um quadro estatístico revelado pela Irmandade, por ocasião do Dia Internacional da Erradicação da Pobreza e dos Sem-Abrigo, a 17 de outubro, nos últimos 20 anos foram acompanhados 2281 adultos (1574 do sexo masculino e 707 do sexo feminino), mas também 107 crianças (53 meninos e 54 meninas), 67 nados mortos e 141 desconhecidos (123 do sexo masculino e 18 do sexo feminino). Só no último ano, desde outubro de 2022, foram acompanhadas 158 pessoas: 143 adultos (108 homens e 35 mulheres), 10 crianças (5 meninos e 5 meninas) e 5 desconhecidos (4 do sexo masculino e 1 do sexo feminino).

 

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Perfil

Mário Pinto Coelho pertence à Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa desde fevereiro de 2005. “Desde há 17 anos que a minha ‘paróquia’ é a Igreja de São Roque, que não é paróquia, é uma reitoria”, salienta. É o irmão-provedor da Irmandade há quatro anos, quando morreu o antecessor, Pedro Vasconcelos, tendo sido eleito este ano para um segundo mandato de três anos, até 2026.

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