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Jovens de Lisboa nas favelas do Brasil
Construir um mundo melhor
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Dois jovens católicos largaram tudo em Lisboa e foram morar para as favelas de Florianópolis, em Santa Catarina, no sul do Brasil. Tiago Krug e Mário Matos pertencem ao Movimento dos Focolares e, por ocasião da presença em Portugal do padre Vilson Groh, que mora nas favelas há mais de 30 anos, partilharam a experiência que viveram junto dos mais pobres dos pobres.

 

Setembro de 2011. Junto ao aeroporto de Lisboa, o jovem Tiago Krug, então com 29 anos, preparava-se para dar início a uma longa aventura. O destino? As favelas no Brasil, mais concretamente em Florianópolis, a capital do estado de Santa Catarina. Licenciado em Engenharia Biológica, Tiago tinha acabado o doutoramento na área de Ciências Biomédicas Genética Humana quando decidiu ‘largar tudo’ em Portugal e ir viver para uma favela. O objectivo era apenas um: desapegar-se de tudo. Ficou três meses. Até Dezembro. Na chegada a terras brasileiras, sentiu o primeiro choque com a realidade. “Cheguei ao Brasil por São Paulo e a primeira vez que tive um contacto com a realidade foi chocante, porque desde o aeroporto até à casa onde fiquei a primeira noite, vi quilómetros e quilómetros de favelas. Eu sabia que ia morar para uma, mas foi um choque ver tanta pobreza e pensar: ‘Eu não me vou conseguir ‘virar’ numa favela’”.

 

Morador da favela

Tiago Krug foi para o Brasil através do Movimento dos Focolares e do Instituto Vilson Groh, fundado por um sacerdote brasileiro que dá o nome ao projecto e que há mais de 30 anos mora nas favelas. Tiago conheceu o padre Vilson em Portugal e expressou-lhe o desejo de partir em missão para as favelas brasileiras. Chegado ao estado de Santa Catarina, o jovem Tiago foi ter com o padre Vilson e é novamente surpreendido. “Cheguei à favela e o padre Vilson diz-me: ‘Nas próximas três semanas estarei em retiro com padres. Portanto, você vai ficar sozinho aqui na favela’. Foi um choque enorme!”. Tiago recorda-se de pensar: ‘Ok, eu vim para cá, tenho que dar o meu melhor!’. Mas o que era ‘o seu melhor?’. “Sinceramente, eu não sabia mas também não devia estar demasiado preocupado com isso. Desde logo foi claro para mim que a única diferença que eu podia fazer na favela, tal como a única diferença que eu posso fazer em Portugal, é viver o meu dia-a-dia e dar o meu contributo positivo em cada situação. Tentei sempre ser um morador da favela: eu não estava lá apenas a participar nos projectos, eu era um morador da favela”.

Nos três meses que passou na favela, este jovem da paróquia da Luz, em Carnide, não se limitava a trabalhar, a participar nos projectos e a fazer a ‘faxina da casa’. Havia algo muito mais importante nesta missão nas favelas brasileiras: “Eu tinha de me relacionar com as pessoas! Pouco a pouco, as relações com os moradores da favela assumiam maior profundidade”.

A entrega ao povo brasileiro era feita sem esperar nada em troca. “Tudo o que eu fazia tinha de ser gratuito. Era só por amor! E se eu tivesse à espera de algo em troca, tudo seria em vão!”. Foi esse “amor gratuito” que transformou Tiago. “Nunca fui tão amado por toda a gente como naqueles tempos”.

 

Mudança radical

A evangelização nas favelas “procura seguir a base do testemunho”. Diariamente, às 6h30 da manhã, o dia começava com a Missa com as mulheres do morro, “porque são as matriarcas que suportam toda a comunidade”. Tiago recorda o contacto que teve com muitos jovens das favelas – que pertenceram a redes de tráfico de droga e chegaram a matar pessoas –, que através dos projectos do Instituto Vilson Groh mudaram radicalmente de vida, participando em retiros. “No último retiro que tive com eles, oferecemos-lhes a Bíblia. Depois, foram os próprios jovens quem nos desafiou a apresentar o traço dos Apóstolos de Jesus. A evangelização que se faz nas favelas vai muito neste sentido de criar sede Deus”.

Actualmente, de volta a Portugal, Tiago dá explicações de Matemática, Ciências e Físico-Química. Passaram-se pouco mais de dois meses do regresso das favelas. Ao Jornal VOZ DA VERDADE, este jovem assegura que a presença entre os mais pobres fez toda a diferença na sua percepção do mundo. “A minha presença nas favelas de Florianópolis mudou radicalmente a minha forma de estar perante o mundo. Pela forma de procurar e ir ao encontro dos outros por aquilo que eles são. Sem querer mudá-los. Não julgando ninguém. Apenas estando presente”.

 

Dar a vida

O desejo de Tiago em ir morar para as favelas cresceu após ouvir as histórias de Mário Matos, um outro jovem de Lisboa que viveu todo o mês de Agosto do ano 2009 nestas mesmas favelas. Tiago e Mário partilharam as suas experiências numa mesa redonda intitulada ‘No amor aos mais pobres’, que decorreu em Lisboa, e que contou com a presença do padre Vilson.

Licenciado em Anatomia Patológica, em 2009 Mário ia mudar de emprego e entendeu ser aquela a altura certa para dar cumprimento às suas inquietações interiores. Ao Jornal VOZ DA VERDADE, Mário assume que a sua ida para as favelas foi “uma tentativa de fazer um discernimento vocacional”. Segundo diz, sempre foi um apaixonado pela questão social e uma vez que o Instituto Vilson Groh oferecia a possibilidade de fazer esse discernimento, o jovem Mário partiu para terras brasileiras. Descoberta a vocação, mas ao matrimónio, Mário Matos diz que a sua experiência de um mês na favela mudou a forma como vê o mundo: “A forma como se vê o mundo é outra. Os nossos olhos mudam! A minha percepção mudou”.

Natural de Valado dos Frades, perto da Nazaré, mas a viver em Lisboa há praticamente 15 anos, Mário recorda-se que a proposta do padre Vilson era ir viver para dentro da favela. “A nossa missão não era ir à favela ajudar. Não! Fui morar mesmo para dentro da favela, estando sujeito a todos os perigos inerentes. Eu tinha de estar disposto a dar a minha vida, em todos os sentidos, mesmo que fisicamente”, explica.

 

Mudar vidas

De entre as várias aventuras nas favelas brasileiras, Mário recorda a visita à prisão, acompanhado de jovens italianos e de uma colombiana. Dois dos detidos mostravam especial atenção à conversa dos italianos. Durante o lanche, Mário conversou então com estes dois jovens que estavam na prisão, que o questionaram sobre a língua italiana. “Eles [os italianos] têm palavras como nós? Têm letras? Também escrevem?”. Mário confessa que ficou “atónito” com “a ignorância” destes jovens: “Fiquei completamente perplexo! Pensar que havia pessoas que nem sequer tinham o conceito de língua ou de nacionalidade”. Os adolescentes brasileiros ficaram também admirados por Mário entender essa linguagem! “Apesar de terem televisão, estas pessoas não têm acesso à educação, à cultura e, obviamente, depois não têm consciência do que é a multiculturalidade”, aponta Mário. “Em Itália há casas? Têm carros? E tem garota bonita?”, recorda Mário as dúvidas destes jovens detidos. Numa conversa com a responsável pela prisão, Mário tem uma nova surpresa. “‘Vocês estiveram a conversar com os dois adolescentes mais perigosos de toda a prisão! Um matou 35 pessoas e o outro 20!’”. A explicação, segundo conta, prende-se com a educação. “Um deles, quando tinha apenas 5 anos, foi colocado pelo pai a traficar droga e a matar outros traficantes… quando chegou à prisão, esta criança nem compreendia que matar era ‘uma coisa má’, porque eram os pais que lhe diziam para matar…”. Essa tarde mudou a vida destes dois jovens, que passaram então a ter como objectivo conhecer Itália. “Quando saí da prisão, só conseguia pensar: ‘Quem sou eu, que vive neste mundo, que inclusivamente tive acesso a um curso superior, e que só agora tenho a noção de que é possível mudar a perspectiva de uma vida inteira apenas em duas tardes de partilha?’”.

Aos 31 anos, Mário é actualmente professor na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa e não esquece os tempos na favela: “Com esta minha experiência, descobri que é possível fazer alguma coisa pelo mundo! A ideia de um mundo unido ou de um mundo melhor não é algo que está distante... Não podemos é ficar à espera que as instituições resolvam, que o Estado resolva, que os subsídios revolvam... mas é uma coisa ao alcance das minhas mãos e da minha vida!”.

 

Optar pela humanidade

Nascido em 1954, o padre Vilson Groh mora nas favelas de Florianópolis há mais de 30 anos. Pela sua experiência, assegura que o chamado ‘mundo melhor’ só pode ser construído na base relacional. “Acreditar no outro, acreditar na humanidade, acreditar que é possível passa fundamentalmente pela relação com o outro, por perceber que o outro é parte de mim, é minha espécie, é meu sangue, é meu osso, é minha humanidade”, garante.

Foi por volta de 1979 que o então seminarista Vilson começa a sentir vontade de ir para as favelas. Após ser ordenado, em 1981, o bispo mandou-o morar um ano na Catedral. A dúvida instalou-se: “Como viver o sacerdócio?”. A resposta era apenas uma: “Optar pela humanidade de uma forma muito concreta, muito palpável, de tocar o outro e assumir essa realidade do outro”. E foi assim que, no ano seguinte, o padre Vilson foi para as favelas. “Fui morar para o morro, tal como todas as outras pessoas que já lá estavam: um ‘barraco’, um colchão, dois pratos, uma panela, um fogão e algumas roupas. Era isso que eu tinha… O meu objectivo não era encher igrejas, mas fazer-me um com cada um, para poder acolher a humanidade do outro. Neste tipo de missão, o importante é o testemunho”. No Evangelho de São Mateus (25, 31), encontrou a inspiração: “Quando Jesus refere: ‘Tive fome, destes-me de comer; tive sede, destes-me de beber; fui peregrino e me acolhestes’, e no final diz: ‘Tudo o que fizeres ao menor dos meus irmãos, é a mim que o fareis’”.

Falando concretamente da realidade que melhor conhece nas favelas do Brasil, o padre Vilson, também professor de Pastoral Social na Universidade Católica em Florianópolis, salienta que o problema é a injustiça social. “Nós não vivemos num país empobrecido. Hoje, o Brasil é a sexta economia mundial! No entanto, vivemos um grande empobrecimento. Quando olhamos a realidade, podemos afirmar que o problema é a questão da injustiça social. Nós temos um país extremamente rico, mas que tem dificuldade em partilhar ou de gerar oportunidade dentro do processo do bem comum”, lamenta.

 

Desporto abre perspectiva

O Brasil é um país com cerca de 200 milhões de habitantes, dos quais 46 milhões são jovens. No Estado de Santa Catarina há 6 milhões de pessoas, sendo que um milhão está na capital, Florianópolis. Mas estes dados são apenas números. O importante, segundo o padre Vilson Groh, é olhar a pessoa. “Quem está diante de nós não é um número, é uma pessoa, um ser humano. É alguém que tem nome e tem lugar. E se é uma pessoa, é o rosto do Criador, Sua imagem e semelhança!”.

O Instituto Vilson Groh, no Brasil, reúne 7 ONG’s (Organizações Não Governamentais) e o ano passado atendeu directamente 7500 crianças, adolescentes e jovens, entre os 6 e os 24 anos. “Mundialmente, a juventude é a que mais sofre, em relação à perspectiva de trabalho, de inserção social, de futuro. Quem mora no mundo empobrecido, sofre ainda mais esse processo”.

Dos vários projectos na área social, o padre Vilson Groh destaca “a educação como o centro de todo a acção desenvolvida”. ‘Procurando Caminho’ é um dos mais de vinte projectos do Instituto Vilson Groh, que se concretiza com os jovens que vivem marginalizados. “Através do surf, procuramos retirar os jovens das redes de narcotráfico. No fundo, procuramos gerar uma perspectiva de vida para essa juventude! Além disso, mostramos ao Governo que não é a repressão policial que faz a transformação, mas é a capacidade de gerar a oportunidade”. O rapel, o montanhismo e a caminhada são outros desportos propostos e que visam dar adrenalina aos jovens. “Optámos por trocar a adrenalina de uma arma na mão pela adrenalina dos desportos radicais!”, conta o padre Vilson Groh.

Ao Jornal VOZ DA VERDADE, este sacerdote sublinha que o instituto a que preside tem “uma rede de relações com a Europa, em especial com Itália e agora também Portugal”. Uma rede que tem o apoio do Movimento dos Focolares. “Com a ligação ao movimento, temos procurado abrir espaço para que jovens de outras partes do mundo possam viver essa experiência de inculturação e de compreensão e alargamento dos seus horizontes. Cada jovem que vai, que parte e que regressa, deixa algo no país onde fez a sua missão, mas traz também consigo elementos, sobretudo para fazer frente ao mundo do consumismo, que fazem repensar a escala de valores destes jovens”.

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