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Brotéria #8
Terra Queimada, de Jonathan Crary
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Jonathan Crary é um notável crítico de arte, académico e ensaísta norte-americano. Embora o autor não esconda, desde logo, a sua simpatia pelo regime soviético, é bom que o seu lugar seja numa sociedade capitalista que, apesar de tudo, é livre e permitiu a publicação deste livro Terra queimada: da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona, 2023), tão autocrítico do seu habitat cultural. O cerne da obra, que nem o título, nem o subtítulo escondem, é um entrelaçamento muito inteligente dos perigos trazidos pela sociedade tecnológica em que vivemos (e da internet, em particular) com, nas palavras do autor, a morte do capitalismo: «Se é possível um futuro habitável e comum no nosso planeta, esse futuro será offline, dissociado dos sistemas e da atividade do capitalismo 24/7 – vinte e quatro horas por cada um dos sete dias semana» [p. 7]. O capitalismo (e o seu fim) e a Internet (e o seu abuso) estão, para Crary, estruturalmente interligados.

O livro tem uma extensa e completa bibliografia e denota um excelente e profundo mergulho na realidade que vivemos. Tem três capítulos que não são titulados, mas cujas aberturas, de intenso pendor filosófico-político, ajudam o leitor a perceber ao que vem.  Sobre o(s) perigo(s) da(s) rede(s), acompanha-se muito bem o autor e a sua ideia mestra de que o complexo internético atua no infindável anúncio da sua indispensabilidade [p. 9]. Refere-se, não sem razão, que a anestesia potencial do mundo digital pode adormecer os cidadãos e, em certo sentido, despolitizar e reduzir a sua militância cívica.

São muito oportunas as ganâncias humanas descritas: a mineração de lítio e terras raras; o mercado livre e desregrado; o abate florestal; a acumulação de lixo; a polarização da riqueza e o «esfolamento da Terra» [p. 45]. São lamentações que acompanhamos e que podem bem ter ligações ao universo digital que nos esmaga. Apoiado em Simone Weil, o autor aponta para estes desencontros que nos conduzem ao desenraizamento digital, reforçador de uma falsa ilusão de autonomia.

Não alheio à minha geografia cultural, estranhei a invocação da Ciência como suspeita. Também eu critico a ciência como ideologia, mas o autor faz o seu olhar de outro ângulo: na página 121, embalado por Max Weber, Crary “crucifica” Hertz, Marie Curie, Rutherford e Bohr, por serem protagonistas das especializações científicas que promoveram, tendo-as submetido exclusivamente a usos militares, de crescimento económico e de expansão imperial. Redutor, no mínimo.

Só na parte final do livro eclode mais obviamente a faceta de artista (até então prevalecia a do filósofo-ensaísta). Ao discutir o fascinante dinamismo do globo ocular, relacionado com a experiência visual e as expressões de arte, o autor entra num terreno de discussão crítica sobre o difícil lugar da beleza no mundo digital. Suspeitando do reconhecimento facial, do olho e da voz, bem como de outras tecnologias congéneres, Crary chama-nos a atenção, pleno de razão, para a necessidade de ficarmos à tona da água, neste mundo digital tumultuoso de encharcamento audiovisual.

Nas suas várias citações, o autor convoca Aimé Césaire [p. 26], fazendo referência à ligação entre a aparentemente boa realização de progresso e as sociedades esvaziadas de si mesmas. Mas sendo a ideia em causa de 1955, não podemos nós, leitores, desdramatizar o ponto onde estamos e a “terra queimada” que somos, pelo argumento de que há muito que estas tensões se desenham na humanidade? Não se trata de um problema deste tempo, nem do capitalismo nem da digitalização, mas, tão-só, a crise de sempre: a da fragilidade antropológica.

Coloco-me numa terceira via, que não a do autor: o capitalismo é uma insuficiência em si mesmo, mas o marxismo não é a salvação.  O meu lugar pode ser particularmente sinalizado pelo que o Papa Francisco diz ser a ecologia integral; lúcida, mas profética e otimizadora; que contempla, como Crary, o entrecruzamento do ambiente, da pessoa humana, da política, da economia e da tecnologia. Foi-me muito gratificante o confronto com esta obra, muito certeira e acutilante nos aspetos mais frágeis e problemáticos da sociedade digital. O diagnóstico é muito bom, as chamadas de atenção são nevrálgicas. A saída do problema (ou a não saída?) tange certa ingenuidade.

Por mais que a leitura me tenha levado para o pantanoso terreno da não esperança (talvez nem a de Bloch, sem Deus, se descortina), animamo-nos com as últimas palavras que, ao menos no fim, nos abrem uma nesga esperançosa: «resta-nos pouco tempo para irmos ao encontro de um futuro com novas maneiras de viver na Terra e de viver uns com os outros». Se é pouco tempo ou não, desconhecemos, mas corramos alegremente por esta urgência.

 

João Paiva


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Publicado em Brotéria 197-5 (2023): 490-491

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