Entrevistas |
José Souto de Moura, membro da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa
Abusos “devem ser combatidos onde quer que ocorram”
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Magistrado e ex-Procurador Geral da República, José Souto de Moura deseja que o encobrimento dos casos de abusos deixe, “de vez, de ter lugar”, “a começar pelo domínio familiar”. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE, este membro da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa apela a que cada sector social da sociedade, como os órgãos de comunicação, a “dar o seu contributo” no combate a este “flagelo”.


A partir da sua experiência como magistrado, que mudanças significativas foi observando para que, atualmente, a sociedade olhe com maior atenção para os casos de abusos de menores?

Parece-me claro que, de há décadas, a cultura largamente dominante de manter no domínio privado tudo o que se relacionasse com abusos cometidos na área sexual, sofreu alterações importantes. Tudo no sentido de haver menos obstáculos à sua revelação, e essa é uma tendência que vai a par com um alargamento da criminalização de comportamentos no sector.

No caso português, as previsões penais dos art.s 171º a 179º do Código Penal (crimes contra a autodeterminação sexual), integram dos sectores com mais alterações, depois de o Código ter entrado em vigor em 1982. Podemos referir como mais recentes as de 1995, 2007 ou de 2015. Tudo no sentido do endurecimento da reação ou da eficácia do procedimento contra os arguidos abusadores de menores e adultos vulneráveis. Outro sector onde se ganhou, em paralelo, uma sensibilidade nova, como é sabido, é o da violência doméstica.

Estamos perante uma evolução cultural que atende à necessidade acrescida de proteção dos mais vulneráveis, que acompanha uma menor iliteracia e a subida do nível de vida da população em geral, um investimento no ensino acrescido, a progressiva emancipação da condição feminina, uma maior naturalidade em encarar temáticas sexuais, etc., etc. No fundo, há um progresso civilizacional efetivo, de pendor humanitário e maior justiça. Sociologicamente, parece-me que quanto menos um mal existe mais custa a suportar o que dele resta. E ainda bem. 

Quanto à minha experiência como magistrado, não disponho aqui de dados estatísticos que confortem a minha convicção, mas parece-me irrecusável que os Tribunais conheceram o impacto deste estado de coisas, com mais processos-crime para julgar. E não posso deixar de referir que o caso Casa Pia de 2003 (já antes se tinham arquivado outros dois), pode ter tido influência.

Depois de ter procurado acompanhar o processo, quando era Procurador-Geral, já como juiz numa Secção Penal do Supremo Tribunal de Justiça fui confrontado com vários recursos relacionados com o tema em causa, e via serem distribuídos mais processos do que aquilo que esperava, em matéria de abusos de menores.

 

O exemplo da Igreja, ao criar comissões de proteção de menores – como a de Lisboa, à qual pertence –, deverá ser também seguido por outros setores da sociedade?

Claro que, se os abusos dos menores e adultos vulneráveis são um mal intolerável, devem ser combatidos onde quer que ocorram. A começar pelo domínio familiar.

É sabido que o maior número de abusos ocorre, de longe, dentro das famílias ou protagonizados por amigos das famílias. Seria bom que o encobrimento dos casos deixasse de vez, de ter lugar, nessa área. Mas claro que se as situações problemáticas têm lugar dentro de instituições ou organizações que nada têm a ver com a Igreja, competirá aos respetivos responsáveis reagir.

A voz do Papa Francisco foi essencial, continua a ser, no sentido da intransigência com os abusos dentro da Igreja, esta acusada de silenciamento no passado. Mas é evidente que aquela voz pode e deve ser ouvida por todos. Não para arvorar a Igreja em exemplo, mas para despertar a consciência de todos.

 

Em casos de maior gravidade, como os de abusos, a exposição mediática – mesmo que não identifique imediatamente as vítimas ou os familiares – é vista quase como “inevitável”. Considera este um fator que afasta a denúncia de alguns casos? O que pode ser melhorado para evitar consequências negativas com esta exposição?

O flagelo dos abusos tem que ser combatido a todos os níveis da sociedade e compete a cada setor social dar o seu contributo. O setor da comunicação social é um deles e, portanto, nesta problemática dos abusos será de esperar uma especial contenção, de acordo com as regras deontológicas que regulam o setor. Uma coisa é informar, outra alimentar o “voyeurisme” de uma camada da população ávida de escândalos.

A vítima de abuso sofreu. Pode sofrer até para toda a vida. Regressar à recordação desse sofrimento (para além do que for impossível evitar a nível processual) é fazê-la sofrer mais uma vez. Tem que se evitar isso.

Não espanta então que haja resistências a revelar os casos. E o grave é que a prática do encobrimento é um convite a novas agressões. Alimentam-se fundadamente as expectativas de impunidade face a futuras agressões.

Parece-me que “o que pode ser melhorado” para evitar a exposição mediática passa obviamente pela consciencialização de quem promover essa exposição, se a promover. Mas claro que, como é bem sabido, o modo de acolhimento dos casos, o acompanhamento psicológico e a reparação que se der aos ofendidos, ou o uso efetivo dos instrumentos processuais que protegem a vítima e o segredo do caso, nunca podem ser esquecidos.

 

É uma questão de justiça a criação de comissões, em vários países, como Portugal, para investigar casos passados e, eventualmente, alguns deles já prescritos? Que legado este trabalho pode deixar para o futuro?

Já vai fazer três anos que se começaram a criar Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, tendo sido formalizada a criação da de Lisboa, em 12 de abril de 2019. Para além de procedimentos com propósitos preventivos, a Comissão de que faço parte encarregar-se-á de acolher as notícias de casos que podem configurar abusos e dar-lhes o seguimento devido. Tanto ao nível civil, designadamente penal, como canónico. Trata-se, pois, de Comissões vocacionadas para minorar a ocorrência de casos futuros e ativar o procedimento que ainda seja possível de ocorrências noticiadas.

Recentemente, a Conferência Episcopal Portuguesa criou outra Comissão, cujo programa de atuação neste momento ainda não conheço, mas do que foi anunciado pareceu-me que tem por escopo principal fazer o levantamento das ocorrências que tiveram lugar em Portugal, no passado.

Face a um mal que urge combater, creio que se justifica ter a noção da dimensão desse mal no passado e da sua evolução até ao presente. Depois, sempre me parece que é devido um acolhimento e uma satisfação, pelo menos moral, às vítimas que os queiram receber. 

O legado para o futuro do trabalho desta Comissão é evidentemente contribuir para que as situações de abuso ocorram cada vez menos. Mas também podemos recordar que as instituições não se prestigiam se esconderem os seus pontos fracos sem os removerem, e no caso da Igreja, que ser humilde é também reconhecer a fragilidade humana. De todos os humanos.

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