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Disciplina ou conversão?
A disciplina é sobretudo uma questão de comportamento. Foca-se em acções e mede-se materialmente. Pode ser superficial, apenas exterior, sem afectar duradouramente a pessoa e ficando tudo na mesma por dentro, se não vai à raiz, onde a mudança efectiva tem que acontecer. Se é um esforço temporário, pode não significar mais do que uma prova de resistência, apenas uma interrupção de condutas ou procederes que de facto não mudaram, apenas, asceticamente, foram controladas ou disfarçadas, mantidas em suspenso, transitoriamente. Disciplina, às vezes, até chega ao ponto de ser apenas um acrescento conveniente a uma vida que não se quer avaliar. Torna-se, assim, uma forma de fuga à conversão, quando, para evitar mudar aquilo que sei que realmente precisaria de mudar, faço outra coisa que exteriormente me desculpa de não procurar a mudança que deveria.

A conversão afecta o ser da pessoa, visa transformar atitudes e hábitos. É, normalmente, lenta e difícil de mensurar. Mais do que um esforço, é um desejo, a realização de uma resposta a uma incomodidade que se sente como chamamento a mais vida. Parte duma consciência de fragilidade que busca e se dispõe a receber ajuda. Por isso, exige um exercício de verdade, um honesto ir ao fundo do que somos e daquilo que precisamos de mudar.

Um esforço bem sucedido de disciplina cria expectativa de mérito, “direito” a recompensa pelo que se deu. Corre-se o risco de pensar que tudo depende da nossa vontade, que, se nos aplicarmos a sério, somos capazes de não falhar. É assim que a disciplina é muita tentadora. Dá-nos a ilusão de controlo, mede-se em tempos ou quantidades, oferece a satisfação imediata de um resultado objectivo. Não exige pôr-se em causa e, antes, dá oportunidade de nos afirmarmos por um exercício de força de vontade. Na disciplina, triunfa-se.

Na conversão, somos vencidos. Ela cria em nós, não orgulho por se ter conseguido, mas gratidão por se ter recebido. A conversão alcança-se na fragilidade. O fruto é humildade, não autoconvencimento. Por isso é que os santos se sentem sempre grandes pecadores.

Mas disciplina e conversão não são incompatíveis, nem necessariamente contrárias uma à outra. A disciplina, bem discernida e orientada para um fim de conversão, é necessária à conversão. É o sinal exterior que faz com que o desejo não fique apenas ao nível da intenção, mas nunca cumprido. Mas é sempre meio e, como meio, tem que ser avaliada pelo fim, pelo modo como vai contribuindo para o alcançar. A disciplina é o teste de verdade da vontade de conversão. A conversão, o fruto da disciplina que realmente vale a pena.

O tempo da Quaresma é muito propício a armadilhas. Uma das maiores é enganarmos o nosso desejo de conversão (ele está lá sempre, mesmo que eu não o ouça, porque Deus chama constantemente) com um mero exercício rotineiro de disciplina exterior. É o perigo das coisas que se repetem ano após ano: rapidamente nos limitarmos às “respostas do costume”, sem sequer pensar se ainda são as mais indicadas. A Quaresma, apesar de ser um tempo regular, não se pode tornar um tempo costumeiro. A vida traz sempre novidade, a necessidade de conversão não pára nunca e Deus não deixa nunca de me de me desafiar a receber mais e melhor o seu dom de Vida. Antes de adoptar qualquer disciplina para esta Quaresma, preciso de me perguntar: qual é a conversão a que o Senhor me está a chamar este ano? E, então, depois, acerto uma disciplina que seja verdadeiramente meio para acolher essa conversão.