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Olhar para a frente, sem deixar tudo para trás
O tempo não pára. Mas nós organizamo-lo de modo a termos rupturas, fechos e recomeços. É importante que assim seja, para nos dar oportunidade de fazer balanço e recolher a experiência aprendida. Também precisamos, de tempos a tempos, de um novo princípio, de acreditar que muita coisa pode começar outra vez, liberta de falhanços anteriores. Sem estas pausas, o tempo torna-se um rolo compressor que nos vai esmagando cada vez mais, num ritmo sempre o mesmo, completamente autista. Não conseguimos sequer fazer assomar a cabeça acima desta pressão do imediato, tão envolvidos ficamos na sequência imparável das coisas. Parar é preciso, é vital. E vamo-nos dando estas pausas: ao celebrarmos os aniversários, ao começar um novo ano escolar, ao inaugurar um novo ano. O fim de ano – passagem de ano – ano novo é, assim, uma grande oportunidade que temos. Mas precisamos de a aproveitar bem.

Dois resultados têm que ser alcançados para este ensejo ser bem aproveitada. Por um lado, deve ajudar-nos a entrar num novo período da nossa vida com ânimo, com confiança nas possibilidades e novidades que nos melhorarão a vida. Isto é, deve ajudar-nos a olhar para a frente com um olhar liberto e esperançado. Por outro lado, não podemos perder a experiência do passado. Há que fazer uma recolha do que foi vivido, olhando para o que se recebeu, o que se conseguiu, e também para os erros cometidos, as falhas que não queremos repetir. Quer dizer, queremos salvar e trazer para o futuro tudo aquilo de construtivo que o passado nos deixou e ensinou. Este exercício desenvolve em nós um sentido de gratidão e de responsabilidade que muito ajudará ao realismo com que nos atiramos a um novo período da nossa vida.
As habituais celebrações de passagem de ano podem servir bem o objectivo de olhar para frente, de procurar até artificialmente uma certa euforia que anima e alenta para o futuro próximo. Celebram bem, ao fim e ao cabo, a nova oportunidade que vai começar. É o lado extrovertido, expansivo, também comunitário, de celebrar a convicção no sentido da vida e na possibilidade sempre aberta de as coisas melhorarem.
Mas o outro lado, mais introspectivo, sereno, de balanço pessoal, que recolhe em espírito de admiração e agradecimento o bom que se viveu e olha com responsabilidade para o que ficou aquém do que podia ter sido, esse não é servido em «réveillons». Tem que ser cada um a encontrar o tempo e o espaço próprios para o fazer. Estes dias, até ao fim de 2009, antes da passagem de ano e do começo de uma nova década, a segunda década do século XXI, são uma ocasião que não se deve perder para fazer esta avaliação de vida.
Sem este exercício, corremos o risco de vivermos a efusividade da passagem de ano como uma experiência quase alienante e pomo-nos a jeito para sermos vítimas de uma idealização ingénua dum futuro totalmente novo onde tudo será possível, que tem mais de supersticioso e mágico do que de cristão. A encarnação que celebrámos agora, mais uma vez, no Natal, diz-nos que Deus entrou e entra na nossa história e é aí e através dos acontecimentos dessa história que nos vai falando. Resistimos a olhar para o passado, porque imediatamente nos afugenta o mais negativo ou doloroso que aí passámos. Mas se vencemos esta primeira repugnância, rapidamente encontramos muitas razões de assombro, de agradecimento, de afirmação de nós próprios, de amor dado e recebido, tudo rastos da presença de Deus nas nossas vidas. É isso que não queremos deixar para trás, mesmo quando, necessariamente, celebramos uma ruptura no tempo.