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O que está em jogo

Foi só depois das eleições que descobrimos que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo era prioritária para o Partido Socialista, capaz de ultrapassar todas as outras na agenda política.

Durante a campanha eleitoral, em comícios e debates, com muita descrição foi ela abordada por qualquer dos partidos. Os que aprovam essa legalização porque não queriam enfrentar o sentir do povo e perder votos. Os que não a aprovam porque não queriam enfrentar as elites cultural e mediaticamente influentes que impõem a “ditadura do politicamente correcto”.

Diz-se que se trata de uma exigência da igualdade e da tolerância. Ninguém ficará impedido de casar, a ninguém será imposto um qualquer modelo de família.

Mas não é isto que está verdadeiramente em jogo.

Em todas as épocas e civilizações, o casamento tem um reconhecimento social e jurídico por estar na origem da mais básica das instituições sociais. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a família é o «elemento natural e fundamental da sociedade e, como tal, tem direito à protecção desta e do Estado» (artigo 16º, nº3).

A primeira forma dessa protecção traduz-se no reconhecimento da sua insubstituível função social. Tradicionalmente, o Direito da Família aponta para um modelo institucional de referência. Há hoje quem queira abolir qualquer modelo de referência e abrir a porta desse Direito a uma pluralidade de formas “familiares” (para os mais radicais, tantas como a imaginação humana possa conceber, incluindo a poligamia e as comunidades sexuais). Não há Família, há famílias – diz-se. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo insere-se nesta linha. Mas se há muitas formas de convivência, família como “célula básica da sociedade”, “elemento natural e fundamental da sociedade” (na expressão da DUDH) só há uma: a que se baseia na união monogâmica e estável entre um homem e uma mulher. Só assim concebida é que ela pode assegurar a harmoniosa renovação da sociedade – a mais básica das funções sociais.

A partir do momento em que o Estado esquece isso, ignora a especificidade da função da família e a confunde com qualquer outro tipo de convivência, fica comprometida qualquer política de protecção e promoção da família. O Estado deixa de reconhecer o que a família tem de característico e mais precioso: a abertura à vida e ao futuro, e também a riqueza da dualidade e complementaridade sexuais, as quais também estruturam toda a vida social. O que é que o Estado vai proteger e promover se nem reconhece o que a família tem de característico e mais precioso?  

É isto que está em jogo. Uma modificação como esta não pode ser aprovada à pressa, entre a aprovação de um programa de governo e de um orçamento geral do Estado. É mais importante do que qualquer outra medida desse programa ou desse orçamento; é mais importante do que o TGV ou o aeroporto.

E, sobretudo, não pode uma modificação com este alcance ser aprovada contra a maioria da população. Não conheço nenhuma sondagem publicada entre nós que indique que isso não sucede. A rejeição é particularmente esmagadora no que se refere à adopção por duas pessoas do mesmo sexo, uma consequência que acompanhou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em todos os países em que esta se verificou. Nos Estados Unidos, os trinta e um referendos já realizados sobre esta questão também conduziram, todos, à rejeição dessa legalização. Este facto parece não causar remorsos à consciência democrática da maioria dos nossos representantes. Uma consciência democrática mais escrupulosa, pelo contrário, não hesitaria em sujeitar esta questão a referendo.