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Converter-se ao essencial (por Hermínio Rico, sj.)

Cortes. Vai ser preciso cortar. Cortar em despesas, cortar em benefícios. Simplesmente o dinheiro agora já não chega. O nosso nível de consumo dos últimos tempos não é sustentável. Vamos ter que prescindir de algumas (muitas?) coisas. É um facto inamovível, é a realidade que se impõe. As nossas escolhas têm que partir deste dado.

Enquanto se trata de dispensar o supérfluo – aquilo que nos é agradável mas longe de ser imprescindível – até nem custa muito. Quando chegamos ao que nos habituámos a sentir como necessário – àquilo que pensamos que não podemos dispensar sem nos causar perda significativa de qualidade de vida – então é que começam as escolhas difíceis. “Reduzir ao essencial”, é a receita proposta. Mas o que é essencial? Será fácil distinguir o essencial daquilo que não é? Poderá haver diferença entre o que sentimos como indispensável e o que é, de verdade, essencial?

No final deste Verão, fiz mais uma vez o meu retiro anual. E a experiência repete-se sempre. Entro com uma ideia sobre quais são as coisas mais importantes no meu presente e futuro próximo, com toda a certeza sobre a necessidade premente de fazer concretas e bem determinadas mudanças e, às vezes, com algum receio sobre este ou aquele desafio que aí vem. As minhas energias emocionais, guiadas pelo cansaço e a carência, marcadas pela ansiedade e algum ressentimento, agarradas ao comodismo das rotinas, condicionaram o meu exercício analítico. E a minha mente respondeu com uma lista bem arrumada e hierarquizada de prioridades e escalas de importância, bem sustentada por razões que parecem indiscutíveis.

Oito dias mais tarde, depois do longo e paciente exercício de me descentrar dos meus apegos e dores, de escutar o chamamento de Deus nos meus desejos mais profundos, de me deixar envolver pelo fascínio da contemplação do agir de Jesus, tudo aparece cristalinamente muito diferente. Objectivamente, as coisas são as mesmas, nada se alterou na realidade espacial e temporal à minha volta, mas eu sinto tudo de uma maneira muito diferente. Reconciliei-me com aquilo que é e não se pode mudar, libertei o olhar e o coração para perceber o que de facto é o essencial na minha situação. Afinal nem tudo o que parecia muito mau o é assim tanto, e nem tudo o que desesperadamente não queria largar é assim tão necessário. Converti-me (fui convertido) ao essencial.

Esta experiência ensina-me que não é fácil perceber o que é o essencial. Se me tivesse deixado levar pela força das minhas necessidades mais imediatas e superficiais que têm maior poder sobre os meus sentimentos e condicionam o meu pensar, teria inevitavelmente escolhido mal, teria estabelecido prioridades erradas, ter-me-ia agarrado a um “essencial” que não era o essencial.

Cada um de nós e todos como país, por imperativos económicos, temos por diante o desafio de viver mais frugalmente, de ter que prescindir de algumas coisas que nos habituámos a considerar necessidades, se calhar até algumas da categoria subjectiva de imprescindíveis. Como sociedade, vemo-nos com muito menos para distribuir pelos mais necessitados. Se há pouco, há que guardá-lo para o essencial. Mas o que é de facto essencial, face a um futuro sustentável e ao dever de solidariedade para salvaguardar um presente com um mínimo de dignidade para todos?

Também a nossa sociedade precisa de se converter ao essencial. E isso começa por recusar decisões apressadas, condicionadas em grande parte pelos poderes com mais impacto reivindicativo imediato e na força dos interesses instalados. No mundo das necessidades sociais, como no mundo afectivo pessoal, as vozes que gritam mais forte e mais depressa não serão forçosamente as que falam em nome do essencial verdadeiro.

Pode parecer um luxo pôr-se a filosofar em situações de emergência, que parecem pedir apenas decisões e decisões urgentes. Mas precisamente por isso é que não nos podemos dar ao luxo de não pensar seriamente nas coisas. Pensar não é perder tempo, pensar bem e a fundo é precaver-se para não esbanjar o pouco que ainda resta (continuando a sequência de tantas decisões ou indecisões mal pensadas que esbanjaram o que agora nos faz falta).

No que respeita às opções sobre o nosso viver comum como sociedade, pensar bem as coisas é a responsabilidade da política. Precisamos que a política discuta o essencial.